terça-feira, 21 de julho de 2009

DIVINIDADES

Já decidi. Quero aquele todo original com sofá de couro marrom no lugar de assentos.

Meu novo automóvel é simples, mas ousado. Não tem vidros elétricos nem CD-DVD-GPS-USB-WIFI-BLUETOOTH. Mas se forem bons amigos, aceita numa boa GLS. A primeira volta dou sozinho, eufórico que estou, mas comedido como sempre, esta é extravasão. A volta é curta, o suficiente para sentir os pedais, sentir as manoplas, sentir a folga do volante e o cheiro do couro envelhecido, perceber o ponteiro impreciso e olhar pela mira com orgulho.

A volta dura até uma esquina. Chego à esquina dela e ligo. Buscando alguma relação com o novo brinquedo, em vez do celular uso um orelhão. Quando procuro uns trocados na carteira, atino para todo o dinheiro que ainda está ali, saí sem pagar pela compra! E já que não perdi um centavo, estou rico, e rico não liga nem interfona, rico buzina.

Buzino, paquerinha.

Buzino para o maldito carro da frente na fila do drive-thru.

A buzina buzino em frente a ela, novamente, e lá está ela, aqui está ela e furiosa, mas insistente. A potência da buzina assopra com violência seus cabelos para trás, seus olhos semicerrados tentam enxergar, e a mão que não segura uma pequena bolsa bate no vidro a me chamar.

Às vezes isso acontece, estou no meio de algo quando, de repente, acordo.

Largo mão da buzina e abro a porta, entra e o cenário não poderia ser mais triste se fosse outro. Caixas de batatas-fritas e hambúrgueres espalhados por todo o assoalho, nauseante odor de fritura que impregna qualquer cabelo mal-lavado, imagine o de duas vezes ao dia. Estaria todo o glamour em mim e não na realidade, teria sido por isso de graça? Uma graça?

Mente quem diz que anão não é uma graça. Mente quem diz que de ver um anão acha graça. Mas ser anão também não é nenhuma desgraça. Ah, não!

Weng Weng, I love you my Weng Weng, come to me and please me, I love you Weng Weeeeeeeeeng!

Mas Weng Weng não é anão, sejamos francos. Ele é pequeno demais, mas proporcional, e não esteve presente quando ouvi sensibilizado o desejo de um jovem meia-idade, meia-estatura, Flanders. Se disser que não tinha bigode fica evidente a real causa de seu nome. Não tinha bigode e sonhava ser jogador de basquete profissional. Sonhava alto apesar de baixo. Sonhava com NBA, apesar de que não alcançasse nem mesmo a haste horizontal do A se pulasse.

O caminho mais fácil são as ligas universitárias, por sua vez originárias das ligas escolares, das ligas infantis e, finalmente, das cintas-liga. O melhor é ir à origem, especialmente nesse caso.

Dentro de uma sex-shop, na seção de cintas-liga, encontro a cheerleader chefe dos anos 60, como está caída. Mas ainda dourada, sua aparência guarda uma saudade dos áureos que passaria despercebida não fosse o pom-pom no traseiro. Chamemo-la Hawn. A dourada Hawn afasta algumas das ligas e espeta o nariz entre elas, me chama com o dedo indicador, “poderia verificar a possibilidade de conseguir uns lances para seu amiguinho Flanders se você for bonzinho comigo”. “Prossiga”. “É que comi burritos no almoço e não escovei os dentes. Em alguns minutos vou buscar minha cadela na tosa e não gostaria de passar vergonha. Diga-me e seja sincero, meus dentes estão sujos?”

Oh! Poupemos os detalhes, só o que importa são os lances-livres.

Holofotes e muito barulho. São no mínimo quarenta mil espectadores a nosso redor. Se Flanders acertar um lance de primeira, adivinhem, vai para a liga principal. Mas apenas se for de primeira. Nesse caso, ele opta por transferir sua culpa, sua responsabilidade, sua vida, suas decisões, seu futuro, sua família, seu carro, sua casa mobiliada, seus documentos todos e seu saldo bancário, tudo para mim. O peso não poderia ficar maior se o carregasse também nas mãos em vez da bola.

No entanto tenho infinitos lances, e o pior, só sairemos quando acertar. Tento uma, duas, três treze 21! Desisto.

Saio furioso para dentro do vestiário, percebo um intenso entra e sai de garotos por volta dos nove anos de idade com papelotes de entorpecentes nas mãos, os que entram perguntam aos que saem se ainda há mais, com notas de dinheiro nas mãos. Esse entra e sai era ainda mais nauseante que o entra e sai de jogadores e cheerleaders desavergonhadas.

Os olhares das crianças são tristes, fundos, negros. O vestiário é verde, ladrilhos quebrados, rachados, fungos. Uma total anarquia. Um misto de guerra e promiscuidade assexuada, promiscuidade moral. Crianças junkie. Saio mais uma vez, agora pela porta de saída, e do lado de fora as coisas não são muito diferentes. Pequenos bicheiros, pequenos traficantes, pequenos bêbados. Percebo que têm todos o mesmo rosto, o meu.

Ao longe, vejo meu próprio rosto me convidar a uma partida de baralho. Me aproximo, começo a jogar sem atenção, e a banca diz “Vinte e um”.

O susto da exclamação me faz reparar num maço de dinheiro, cartas de baralho e um papelote sobre um livro largado no chão. Pego tudo na mão e me dizem “cuidado, isso é do Fogaccia e você sabe que ele vira um pastel quando tocam suas coisas”. Qual o quê, esse Fogaccia é um pequeno imoral, vou eu mesmo até ele.

Mas já me encontrou. E não é que vira mesmo um pastel? No instante que me vê em posse de seus pertences, começa a dizer “está certo, você venceu, volte lá e cobre os lances livres, agora irá acertar. Quanto a vocês, todos ao carrossel, à amarelinha, chega de azar e drogas, leite achocolatado para todos, e frutas ao mel...”. Assim continuou fazendo o bem.

O que me passou pela cabeça, depois, foi que todo aquele desconsolo era por minha falta de empenho, coro e corro como nunca em sonho corri, adentro o ginásio, volta olímpica com o livro nas mãos, como alegando nosso salvador, a platéia toda me saúda como o escolhido, e todos reverenciam o tal livro como solução incnteste, como fé e não razão, como algo que escapa à nossa compreensão e felizes que tenha eu supostamente aceitado, mas não. Num surto de sanidade, peço a retirada da tela entre mim e a cesta, arremesso o livro em direção a ela, mas ele só faz subir, subir, e com holofotes que estão mais para holofortes me cego. Recebo de volta o livro como um contra-baixo que me cai na testa, todo Novoselic, e isto foi o mais próximo de uma divindade não terrena que consegui chegar.

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Alguém não conhece Weng Weng?


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