segunda-feira, 23 de novembro de 2009

UM POUCO DE FÉ NA RAZÃO E O OPOSTO

Por mais que lhe doa eu admitir, não é algo de que me possa envergonhar, portanto confessaria se não considerasse tal verbete tão beato quanto nunca serei, Carola. Também não admito, pois lá no âmago admitir confere certa culpa em busca de absolvição, ao que nos resta não muito mais que discutir. Exponho e argumento, não me indisponho a lhe ouvir.

Ao fato: acreditar em deus é algo em que tenho grave dificuldade. E como disse, explico: não se escolhe acreditar ou não nas coisas, mas sim nos convencem disso ou do contrário – a vida é um grande exercício de persuasão. Quanto a acreditar ou não em alguém, isso é um exercício que tal pessoa nos faz. Eis que então assim, na sequência, concluo: deus nunca apareceu pra mim, e muito menos mo disse palavra. Portanto, reconcluo: se deus nem sequer palavra me proferiu, qual minha obrigação em acreditar? Em quê?

Não me disse nada, e é nisso que acredito.

Você, Carola, se me disser que saltou do edifício Itália sem guarda-chuva, ainda tenta me convencer de algo em que muito provavelmente não acreditarei, mas tenta. Quando minha própria mente me tenta convencer de que voltamos para casa de balão na noite anterior, tendo também a não acreditar, e olha que sou mesmo eu a tentar persuadir. Conclusão, mais uma: sou cético. Se não me der provas, nem em mim mesmo acredito.

Mas sou justo e tanto quanto: se sou difícil de acreditar, sou difícil de desacreditar. Não gosto de ideia de haver um mundo de pessoas enganadas, e umas poucas privilegiadas e acertadas. Acho mais fácil crer todas erradas, todas certas.

Se não me conseguiram convencer da existência de um deus, também não me conseguiram convencer de nada extremamente contrário. Prefiro acreditar que há certa razão nessa inconseqüente crença que habita milhões de corações e mentes do ocidente e do oriente e dos pólos, há fé na razão e razão na fé.

No meio de uma mata atlântica, uma montanha descia quando cruzei um tipo Hammet, cem por cento Kirk: cabelos longos e cacheados, ensebados, um bigodinho tão franzino quanto o corpo logo abaixo, um tipo de los muertos. Olhos perigosos sem ameaçar, um convite para segui-lo.

“Mas nem o conheço”, logo soltei. “Bem, não é como se precisasse me seguir, porque de fato não precisa, mas você pode, e lhe garanto que perder com isso não vai nada. Siga-me apenas se assim o que quiser, e nada importa se for por curiosidade e por curiosidade apenas, nada mais. Siga-me se quiser e parta assim que bem entender”.
A arte da persuasão bem executada, uma pitada de psicologia reversa me põe sempre a caminho de algo.

Segui-o de perto velozmente, e nessa parte se pode perceber bem certo que se trata de um sonho, pois mesmo o absurdo de estar na mata tendo sido relevado, a tal velocidade e destreza não passaríamos despercebidos. Que bom, sonho.
Com tamanha velocidade, não percorremos se não menos que alguns bons quilômetros até chegar a um abrigo todo enfeitado apesar de muitíssimo rudimentar. Pau-a-pique aqui soaria Lindenberg.

Em oposição à escassez de infra-estrutura, fartura extrema de agiação e alegria. Não consigo mais avistar o cabeludo que me conduzira até aqui, e enquanto o buscava com o olhar, fui apanhado pela mão por um menininho negro de bochechas redondas e feição amável, com olhar Sábio de ao menos cem anos, se não mais. Era Natal.

Algumas crianças entravam e saíam do lugar após brincar uma brincadeira de criança qualquer; saíam jovens adultos, satisfeitos e íntegros. A cada nova turma, a mesma brincadeira em tom de gincana do Xou da Xuxa, com brindes no final. Após uma rodada de corrida do saco, o negrinho me trouxe pela mão mais próximo de um armário onde todos entravam e escutei seu discurso: “toma, pegue cada um apenas um brinquedo, pois não são muitos deles mas são inúmeros de vocês, e todos têm o direito de ser tão felizes quantos os demais, portanto para cada um, um. Sei que são usados, um pouco velhos e gastos, mas lhes farão tão felizes quanto quem já os possuiu um dia, e tão mais felizes quanto satisfeitos estiveram aqueles que os doaram no momento da decisão. Lembrem-se desse dia e passem a mensagem adiante, mesmo que seja apenas passando um brinquedo adiante, se julgar que ela é digna de perpetuar-se, se julgar que algum bem lhe fez”.

Sua voz nos cercava sem ser alta, mas muito macia.
A mesma voz me comentava aquilo que não direi, mas que devem sentir por si mesmos de quando em vez ao pensar coisas desse tipo. Me contava e fazia rodar uma espiral de dentro para fora, de raio cada vez maior, de voltas cada vez mais longas, até que caí de novo em mim, num ambiente quase urbano de cidade rural. Um japonês caminhava até mim e cantava uma melodia que para vocês, por sorte, não conseguirei transmitir em palavras, pois é tão grudenta que sempre me recordarei apesar de sua absoluta inexistência materail:

“Eles são os donos
eu sou só o cobrador
eles são os donos
eu sou só o cobrador
os pássaros são assim porque ele quis
são assim os cães porque ele quis assim
eles são os donos...”

E assim se arrastava repetidamente sem soar monótono. O japonês estava cercado de pessoas dos mais diversos tipos. À medida que cantava, gesticulava fluidamente, organicamente, e apontava sua platéia quando dizia “eles são os donos”, e apontava os bichos à medida que os cantava também.

Minha cabeça era a câmera numa grua infinita e invisível, seguia o olhar que seria das pontas dos dedos do japonês, e ao mesmo tempo o via, grisalho e sereno, atento a mim.
Me perguntei se o tipo de los muertos, se o negrinho e se o japonês não seriam todos o mesmo. Tinha certeza que a platéia de todos não era a mesma. Essa éramos nós, e entre nós estão vocês, e esses todos somos os “eles” da canção. Somos também os elos do mundo.

Somos os donos e os deuses de nós mesmos e do nosso mundo, alguém dizia, e se ele é o cobrador, é aqui isso mesmo e nada mais do que nossa consciência nos cobrando um papel que é apenas nosso e não temos coragem de assumir por conta própria. Temos medo do que somos e preguiça de cuidar do que temos.

E será que os três eram o mesmo, e que os três me representavam deus? Será que deus veio a mim em sonho apenas para me dizer que não existe? Incrível poder de persuasão. Continuo o mesmo cético, mas ganhei outro relato onírico e muitos momentos de reflexão acerca de mim mesmo e de nós todos.

Me prove que existe, prove o que não existe, provas que não existem. Onde?


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