quarta-feira, 21 de maio de 2014

A FUNDO A MORAL

De repente saímos de um trem sem passado, como se tivéssemos recém acordado, quando de fato o mais evidente é que acabáramos de adormecer. Saímos você, eu e mais algumas daquelas pessoas que na hora parecem muito familiares, na alvorada parecem ninguém, e com quem quando cruzamos passamos vivemos um misto de epifania com ansiedade e rogamos para São Longuinho. Rápido notaria-se que as roupas que nos vestiam, essas tinham muito passado. Nossos semblantes denotavam que por muito havíamos passado, apesar da época ser outra, anterior à nossa, e de termos as mentes jovens.

A construção onde chegávamos tinha dois aposentos íntimos, cada um com seu proprietário. Ambos carecas e igualmente cruéis. As mulheres conosco, todas, foram rapidamente tomadas pela consciência de que aqueles serem lhes imporiam atos pouco ou nada humanos. Minha subconsciência deixou analisar até aí, sem entrar nos méritos do que seria isso. Talvez porque depois de tanto tempo sem passear por essas bandas mais hetéreas, tenha contraído de volta uma certa reticência quanto à liberdade de que posso me servir.

De toda maneira, sabia que de bom daqueles quartos sairiam apenas vítimas.

A sujeira cobria boa parte de nossas peles, de forma que os olhos e olhares se tornavam ainda mais expressivos. O trabalho forçado e escravo que nos recusávamos a prestar com atenção era tão compulsivo quanto patológico, com a diferença que da patologia, quem padecia não eram os trabalhadores.

Logo notei na indumentária dos que nenhum cabelo mantinham um símbolo que foi ressignificado na década de 1930 e que é quase tão imoral quanto nossas mentes em seu refúgio mais seguro e profundo, aquele que não se carrega senão na lembrança. Após instantes que duraram horas nesse lugar campestre e pronto para chafurdar, parecia que muito tempo havia passado e que muita coisa ruim havia acontecido e que muita lembrança havia sido deixada de lado em nome da sanidade, mesmo que muito próximo da tênue linha que nos separa da sandice. A mente sabe bem esses limites, e consegue andar bem reto ou torto tanto quanto necessite sem deixar de ser marginal desse rio caudaloso e feroz que arrasta os que se soltam corredeira abaixo em um mergulho sem volta.

Notei em seu olhar, no entanto, o peso de todas as coisas que se recusava lembrar conscientemente, e vi outros fazendo como havia eu mesmo feito outras vezes, buscando em cada pedaço de tranqueira velha uma peça de ligação com um mundo mais sensato que nos resgataria daquela situação vexatória para quem a impunha.

Acompanhei com o pensamento seus passos cuidadosos ao adentrar o recinto do mais chefe dos algozes, que dormia em uma espécie de macacão de malha arrastão vermelho, como uma meia-calça que fingia tampar todo seu corpo e nada mais. Ele dormia banguela enquanto seu dedo deslizava pela coroa do isqueiro. O caminho de rato se acendeu no chão, e com a calma de um pavio de vela o fogo se alastrou. Subiu pelo pé direito, percorreu a perna dobrada e ardeu no púbis do culpado pela nossa condição. Subiu mais pelo corpo todo, que não se movia, até chegar pelo queixo à boca, a única que se mexeu imediatamente após abrirem tranquilos os olhos do ser que não agonizava da dor que de fora parecia sentir. Ardiam chamas precisas, cirúrgicas, que não se alastravam mas tinham cor de solda capaz de fundir metal de imediato. Sem sentir-se culpado, pronunciou:

– Imaginou que fosse reclamando de dor que haveria eu de ter me tornado quem sou?

O instante seguinte me encheu da sensação de liberdade, que até agora não entendo se é oriunda da situação ou apesar dela. Libertar-se da dor de algo imoral é não distorcer a noção de moral, que é subjetiva, mas justamente por sê-lo, compreendê-la. Porque a subjetividade que precisa compor a moral é crua demais para se digerir fácil. Nosso estado de vigília não é sempre que tem o desapego de aceitá-la. Até dela, nossa própria, nós próprios nos escondemos.

A verdade é que não sentia durante tempo algum remorso ou culpa ao ignorar aquilo que não via, não sabia nem imaginava.

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segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

CAMINHO ATÉ ACORDAR

Deve ser sábado, porque não parece domingo e o clima é de clube. Sou metade de um par de amigos que defronte às inúmeras possibilidades de quadras, tenta decidir entre cimento ou saibro. Quando enfim decidimos sujar as meias inteiras de terra, acontece um de meus fenômenos oníricos preferidos, a abstenção de seu próprio corpo – no caso, o meu. Instantes após a decisão, o par de amigos caminha em direção a uma quadra vazia, no entanto nenhum deles sou eu. Fico sentado sobre a mureta de concreto que protege o relógio de água enquanto os vejo se afastar, e assim em algum momento somem – mas não porque foram longe demais, e sim porque se transformam em outra coisa.

Assisto a uma partida pífia de futevôlei entre pai e três filhos, todos acima do peso e com formato similar à imensa bola de piscina que petecam naquela ruidosa e trágica tentativa de se divertir. Penso que além de ocuparem a quadra de tênis com essa demonstração tão menos nobre das capacidades do corpo humano, me desviaram a atenção daquele par de amigos cuja metade era eu mesmo. Levanto imediatamente e caminho em direção à quadra, a mesma para a qual me vi caminhando antes de sumir.

Não obstante minha determinação em me encontrar, toma forma uma enxurrada muito mais determinada e forte que qualquer desejo que houvera antes sentido. O intenso fluxo de água que me impede de prosseguir é também tingido pelo saibro, tomando um aspecto muito mais sujo que gostaria de obter em minhas meias. No entanto, o peso das meias me é irrelevante comparado ao lençol que tento mover. O impulso e a necessidade de carregá-lo são maiores do que gostaria e me impedem de simplesmente largá-lo por ali, impregnado de tanta sujeira que está. Para completar o peso e a força da situação, basta saber que meus passos não levam a lugar outro a não ser onde já estou, apenas para dar-me conta de que a cada tentativa de sair dali, meus pés afundam na lama cada vez mais.

A essa altura, o lençol já está tão sujo e tão pesado que se eu fosse uma máquina de lavar, deveria ligar para a assistência técnica, agendar a visita de um especialista e certamente pagar por um conserto não coberto pela garantia, que todavia já estaria expirada. Não consigo levantá-lo mais que alguns dedos acima da água imunda, e com muito esforço, incapacitado de tentar outra coisa devido ao inexplicável fardo indelével que parece ser esse de carregá-lo comigo aonde for.

Enquanto uma eternidade toma conta de mim, vejo duas adultas com jeito de criança, e suas expressões carregam algo que me dá a certeza de conhecê-las: têm exatamente a mesma idade que já tive um dia, a exata idade que devia ter quando as conheci. A julgar pela sua inocência, são da época que a escola é mais um lugar para passar tempo que aprender e estudar. Entretanto, discutem de maneira pseudo intelectual como duas convidadas em uma vernissage nova-iorquina em um filme de Woody Allen. Dizem algo como “a atratividade dos corpos não se compara à inevitabilidade da atratividade das fatalidades impostas pela trama tecida pela grande tecelã do destino” e outras palavras longas e aparentemente desconexas, mas que deixavam no ar um tom de amarelo muito bom para contrastar com o marrom escuro da água e trazer riqueza nesse ano novo que chega. Fazendo uma análise rápida, esse amarelo também poderia representar a pureza das crianças dizendo “atenção, o que é seu está guardado – para o bem e para o mal”.

Entendo que é hora de agarrar o celular e dizer que obstinado que estou atrás de mim mesmo, é inútil tentar correr atrás de mim se a enxurrada é muito mais forte e insiste em me levar para a esquerda. Antes de dizer adeus, fique apenas claro que não sei para onde vou, apenas que nesse momento devo estar indo para outro lugar. E assim vou para esquerda com a velocidade de uma estrela dando carona ao pequeno príncipe.

Onde chego não é bonito. Não temo dizer que é o lugar mais assustador onde já estive, apesar da coragem inerente ao sonhador ser quase inabalável. Uma favela com jeito de Rio de Janeiro, vocês sabem o que penso disso. Uma favela em guerra e ocupada pelas forças armadas do exército, que nos protege a mim e a outros colegas reféns dessa situação, e talvez de si mesmos.

Assim como sonhos revelam desejos, dão também vazão a nossos principais medos. E claro, um monte de baboseira sem sentido que não é nem uma coisa, nem outra. Mas sinto na ponta do indicador uma impotência que sim, trata-se de um de meus maiores receios: tenho o desejo de avisar meus amigos e famílias que estou neste lugar mas que estou bem, no entanto tento operar um iPad e não consigo entender a interface. Sinto na ponta dos dedos o desespero e impotência de milhões de mães e pais e tias e avós de hoje em dia que tentaram fazer parte de um mundo que se transforma mais rápido que eles, e obtiveram nada mais que o desprezo e impaciência daqueles que sabiam operar e pensavam ter o mundo em suas mãos, seus jovens filhos e sobrinhos e netos arrogantes e hormonalmente desequilibrados, jovens que ainda tardam em aprender que tudo aquilo que já sabem ainda não é nada.

Desisto e sento no chão, próximos a outros como eu. Reféns de nós mesmos.

Mantidos pelo exército em proteção, por vezes não tenho alternativa a não ser andar de um lado para o outro em puro torpor. Não sei se penso em alguma coisa, não sei se planejo ou executo um plano. Sei que escuto o tempo passar enquanto a guerra lá fora parece feia, apesar de muito mais quieta que essa ensurdecedora ausência de pensamentos.

Uma barraquinha de frituras não é guardada por ninguém. Tenho fome e pego de um saco o pedaço de pão que reparto com alguém que me olha. Sem pagar nada por isso, sou observado sem entender o significado dos olhares, se é que há algum. Começo a pensar sob um dos olhares mais intensos que já me teve como alvo. Não consigo decidir se me repreende, e caso sim, por quê. A essa altura, já penso que o pão é um símbolo não do pecado, mas do livre arbítrio. Ninguém bateu na minha mão, ninguém quis saber de nada. Talvez a barraquinha fosse uma gentil oferta e tentação provida pelo exército como um estímulo à ação. Talvez aquele olhar apenas me repreenda pelo fato de ainda estar aqui e não em outro lugar.

Percebo que começo a reconhecer algumas construções que se movem mais rápido do que meu olhar. O chão sobre o qual estou sentado é de um ônibus, e a meu lado seguem alguns dos outros reféns, todos calados. Parecem saber melhor o que está acontecendo, ou apenas estão mais conformados com a situação. Grito uma pergunta, “ONDE ESTAMOS?”, e uma voz me responde “no centro”. E o centro é o exato lugar onde não se pode ir mais para dentro. Do centro, para qualquer direção que aponte ou caminhe, o destino é sempre para fora, e fora tem a inevitabilidade da atratividade.

Caminho em direção à dianteira do ônibus e falo com um sotaque que não é meu, digo ao motorista que “preciso baixar o mais depressa possível”. A freada não é brusca, apesar da proximidade do ponto em que paramos. Desço pela porta da frente mesmo, feliz por fugir daquela guerra, e ao olhar para a direita vejo baixar do mesmo ônibus mais um monte de gente como eu, exceto aquelas que pareciam conformadas demais e que deram a mim seus mais vazios, no entanto mais expressivos olhares.

Assim como o sotaque não era meu, o gesto que aceno para os demais não o é. Um misto de paz e amor com o V da vitória ou da vingança que se vê muito em fotos de gente cuja outra mão segura um copo de energético. Eles me sorriem de volta, e entendo que falei sua língua. Vão todos em uma direção não oposta, mas diferente da minha. Apenas uma mulher que deve ter aproximadamente a mesma idade que eu caminha junto a mim. Sorrio e digo “parabéns”. Ela sorri, diz o mesmo e me convida para visitar o museu da lingerie. “Chega de glamour”, ela diz, e completa com “está mais para um memorial da roupa de baixo, então vamos logo para outro lugar”.

Sorrio outra vez e sem dizer mais nada, caminhamos. Ela tem quase a minha altura, cabelos castanhos e sorriso charmoso. Percebi que às vezes ela erra e sorri para baixo, mas acho que sou eu que entendo menos de sorriso que ela. Afinal o lance do sorriso é o que faz você sorrir, e não o quanto mostra dos dentes. Caminhamos sem falar até acordar. Era esse o outro lugar.

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segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A MORTE DA MENINA DOS OLHOS

A garota namorava um garoto, como muitas vezes acontece – mas não exclusivamente. Já se tem notícias e indícios e provas e testemunhas da existência casais diferenciados do supracitado. Isso se pode ver a olhos nus, mas dar-se-á preferência a ver os vistos vestidos. De minha parte, desde que não estejam desnudos, em nada me afeta. Já nus, quase invariavelmente me incomodam as presenças de casais com as distintas fórmulas, quais sejam:

- a já citada [garota + garoto] e sua variação [garoto + garota];
- [garoto + garoto]; e
- [garota + garota].

Bem, as elucubrações sobre o tipo de casais que se pode encontrar em baladas de ali e de acolá devem ceder espaço ao que acontecia na balada de aqui, dessa história. Um casal [garota + garoto] estava em uma típica balada paulistana, dessas onde os legalmente adultos têm cara de meninos[as] e fingem beber como a gente grande que não são; dessas de onde periculosos roqueiros fortemente armados com a indumentária poser voltam ao final das madrugadas para as casas de seus pais e mães, torcendo para que os adultos não estejam acordados.

A garota tem rosto familiar, uma mistura de ser humano com alguém que já passou por mim quando estava acordado - mas não vivo - e que em algum momento, para alguém, fez sentido existir. A boca desse rosto mexe enquanto os olhos de outro rosto – igualmente conhecido – observam atentos ou vidrados.

O rosto dos olhos é também feminino, assim como o corpo, que caminha agora em minha direção. Os olhos se destacam do rosto e parecem falar, mas a boca não se mexe. Enquanto a boca continua estática, uma mão busca em meu bolso a caneta, ao mesmo tempo que a outra saca de seu próprio bolso um papel. Sobre meu peito, logo abaixo de meu nariz de estátua, põe-se a escrever. Termina rapidamente e me entrega o papel e a caneta; seguro cada um com uma das mãos, e rapidamente leio com os olhos o que faz minha boca abrir:

Lembre-se sempre de mim, eu simplesmente gosto muito de te olhar.

A razão pela qual me sinto tão afetado a ponto de estar boquiaberto não se sabe, mas se nota este fato pelo de que decido ir-me embora. Volto-me para a escada, e a menina dos olhos desce seus três degraus antes que eu. Percebo que está desconcentrada, desequilibrada, parece louca. Não psicologicamente, mas drogada. Percebo tudo isso mas não dou conta do colar dela, que cai.

Há algo certamente incoerente na última sentença, uma vez que não haveria de poder relatar aquilo de que não me dera conta. A conta não fecha, e o que era pra ser apenas absurdo, agora ganha ares de ilógico – isso não, nunca fez parte do programa. Por isso, meu subconsciente trabalha em remediar a situação. Vamos aos fatos subsequentes.

A boca da outra garota, a garota da boca, fala agora comigo. As exatas palavras não lembro, mas dizia algo como “você já foi mais atencioso, e muito mais cavalheiro! Não vê que a menina precisa de ajuda, bem na sua frente?”

Entre a garota da boca e a menina dos olhos, creio que me assemelho muito mais à segunda. Por isso, volto minha atenção àquela que descia em minha frente, e noto que havia ela deixado cair um colar, para o qual olhava atônita, completamente incapaz de mexer algum dos braços em direção ao objeto e agarrá-lo. Seu olhar era de tamanha incompreensão; só alguém que não pudesse entender como o cérebro sabia o que precisava fazer, mas ainda assim não tivesse um corpo capaz de obedecer, esse olhar apenas esse alguém poderia fazê-lo. A cena é trágica.

Em resposta, meu olhar é blasé. Minhas sobrancelhas treinadas fazem pouco caso, então nos viramos e olhamos, elas e eu, para a garota da boca, e sem dizer palavra mais uma vez, deixamos claro que “foda-se essa porra”.

Com essa atitude me percebo um pouco tonto – meio bobo, meio desequilibrado. Caminho cambaleante até um banco à beira do balcão do bar, onde encontro minha jaqueta e um colar de caveiras douradas presas por uma fita vermelha. A jaqueta é pesada, de couro, e preta. Quando tomo para mim meus objetos e decido alcançar a porta de saída, um estrondoso ruído seco marca a parada da música, que até agora não havia notado, mas cuja ausência deixa claro que estivera durante todo o ocorrido ali, presente.

A música dá espaço a rumores. Os frequentadores destas baladas, sobre os quais já expliquei um pouco, são grandes frequentadores de rumores – gostam de criá-los, lê-los, sabê-los, vivê-los. Vivem como se seus próprios temores fossem temas de rumores oninteressantes [puro neologismo absurdo, no entanto lógico], estão sempre em teorias de conspiração onde gente má e invejosa busca em vão dar cabo à sua felicidade. Felizmente, existem armas contra isso*: posts anonimamente endereçados aos invejosos nas redes sociais, que são imediatamente apoiados por gente igualmente vítima da novela da vida; e configurações de privacidade em seus álbuns de fotos. Um viva à tecnologia, que dá alternativas para que possam viver suas vidas um pouco mais tranquila e reservadamente.

* Desde que o mundo é mundo, há também a alternativa de simplesmente não se relacionar com pessoas que não sejam do seu interesse ou simplesmente não façam bem. Mas para quê facilitar? Afinal, viveríamos de popstar [sic] o quê?

Voltando aos rumores causados pelo estrondo, esses dão conta de que a menina dos olhos possa estar morta. Não dou muita bola porque não quero crer nem mesmo na simples – no entanto complexa – possibilidade da morte de minha pupila! Sim, se me assemelho mais à menina dos olhos que à garota da boca, isso tinha razão de ser. Algo secreto sempre houve entre nós, e se era secreto, por isso não me abaixei para ajudar com o colar! Por isso não disse palavra! Por isso! Por isso passei batido, e por isso decidi ir embora! Não queria demonstrar algo que não podia, sem entrar nos méritos de se sim ou não gostaria.

Um médico de sonho toma seu pulso em meio ao círculo de gente a seu redor. Com olhar frio de quem já fez isso mais de duas vezes, anuncia sua morte.

Imediatamente, todos os presentes voltam seus olhares ao namorado da falecida. Ou seria ex-namorado? Afinal, não creio que nem mesmo a justiça dos homens considere legal um namoro entre morta e vivo – pense bem, uma das partes está impossibilitada de impor seus limites e vontades, o que não é, de nenhuma maneira, justo. Consideremos que ele vá deixando de ser o namorado à medida que o clima esfria.

O namorado está sob os olhares atentos de todos os convivas, menos eu. Tem um tipo de vampiro, então pensei em chamá-lo de Luminati para efeitos dramáticos apenas. Está um pouco gordo, então é certo que deve tomar umas taças de sangue a mais que o normal, sendo sabido que sangue engorda. É vampiro dos tempos em que vampiro não ia à praia, no entanto tem as sobrancelhas feitas. Apesar de frio, parece em choque. Em movimento súbito, transforma a balada em restaurante, e o balcão do bar em balcão de comida japonesa, daqueles com esteiras como as de resgate de bagagens em aeroportos.

A esteira roda ruidosamente ao mesmo tempo que começo a chorar copiosamente. Meus olhos materializam a dor pela perda de minha pupila; as lágrimas lavam a alma e choram a perda da menina dos olhos. Enquanto isso, todos os outros olhos me parecem repreender, como se não tivesse direito de estar ali ou de chorar por isso. E o segredo de nossa relação vai sempre conferir-lhes razão aos olhos do mundo, a não ser que revele a natureza de minha tristeza, o que não pretendo em razão da honra que jamais deixaria de manter após tão triste e inesperado evento.

A esteira roda e velam o corpo que jaz sobre ela, passando em frente aos olhos estéreis dos rumorosos indivíduos a velar e orar por sua morte, o que continua incoerente com quem são. Não consigo parar de pensar na tristeza que é perder alguém assim tão jovem, tão subitamente, e de maneira tão definitiva.

Procuro meu jornal sem sucesso, e logo me vem o volátil desejo de roubar um. Não sei exatamente a razão de tal vontade, assim como não busco entender o porquê ou a moral de quase subitamente haver desistido da ideia. Na prática, gosto de pensar que o mesmo objeto que distrairia meus olhos, secaria minhas lágrimas.

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terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

SABEDORIA DAS CORUJAS

Acordo com a nítida sensação de que comecei a sonhar. Eventos futuros comprovam minhas desconfianças – somente o absurdo é capaz de me não manter entediado nesses tempos de guerra.

Uma aniversariante fala ao telefone, tenta explicar em uma conference call a todos como chegar ao local da festa. Sei que faz aniversário pelo chapéu cônico e cômico sobre sua cabeça. A aniversariante pede ajuda, e me ofereço para dirigir até o local.

Assim que chego, entrego o veículo laranja ao manobrista, que me retribui com um papel de valet contendo em vez de número, o dizer “é nóis”, seguido pelo número 11. Olho para a comanda e, ao me dar conta do número, retruco: “essa é a comanda de quem não bebe”, ao que ele contra-argumenta “é melhor assim, pois seu carro vai ter que te levar embora, fechamos às 11”. Nesse exato momento me enervo, mas sem demonstrar, e digo “isso é problema meu e dele. Arrumo uma mulher que o conduza, a minha”.

O manobrista então sorri, cede e me concede a comanda que permite ao portador beber, mas não sem fazer ressalva: “vê se maneira, tá?”. Sorrio por fora e por dentro, mas não digo “tá”. Nesse mesmo instante, um puta de um barulho de metal contra metal. Filho da puta, um maloqueiro bateu no meu carro preto. De moto. Ele levanta todo Kramer e tenta amenizar a situação:

- Calma, amigo, não aconteceu nada. Veja só, só fodeu a traseira. Vai custar algo entre R$ 800,00 e perda total. Em todo caso, está aqui meu telefone caso queira bater um papo. Grana não vou ter...

Não sei se admirado, mas fatalmente perplexo, decido entrar no bar, que é um restaurante. Peço mesa para seis, e assim que me sento, chegam 5 castores – pais e filhos. Todos os pés da mesa são de troncos pesados de madeira, de forma que me sinto preso, levemente pressionado contra a parede.

Me perguntam onde fica o toilette e não esperam resposta. A comida chega. Como orecchiette amatriciana, a mamãe castor come salada, uma família de grilos come muito e o restante dos castores rói os pés da mesa. Toda a cena se transforma sem pedir licença e me vejo em meio a um culto judaico com meu prato na mão. Meu prato amatriciana, com pancetta. Irônico, vai?!

Trata-se do culto do “Sarro ao Cristianismo”. Não vou entrar em detalhes, mas te garanto que eu, que não sou nem uma coisa, nem outra, ainda assim me senti na obrigação de reprovar e pedir pra fazer mais. Passei um briefing para alguém de minha confiança explicando o porquê da minha desaprovação.

Ando pelos corredores da Sinagoga em direção à Slot Machine. Percebo que algum otário deixou um crédito de 11. Ou um otário, ou deus [deus?] tentando fazer com que acredite na sua existência. Ganho, na primeira puxada da alavanca, e meu crédito sobe para 77. É, cara, você vai ter que se esforçar mais se quiser fazer com que eu acredite. Está certo que de 0 para 77 o crescimento percentual é simplesmente infinito, mas em números absolutos isso não diz muita coisa.

Em uma tela que transmite a câmera de segurança, vejo um irmão e uma mãe que não são senão os meus discutindo sobre a possibilidade de meu comportamento contestador ser reação à medicação. Fico puto por dentro, porque estou tentando justamente contestar menos, agir mais, mas “isso é problema meu”.

Continuo pelo corredor a fim de sacar meus créditos divinos. Não são, mas vou chamá-los assim. Para fazer o resgate, o grave atendente do guichê solicita meu Amex e pede para que digite seu número de cabeça na máquina. Erro uma vez, duas e me prendem sob acusação de fraude. Eu, que não sou réu primário nem nada, já dou um jeito de me transformar em uma criança negra com um pai negro. Disfarce bom: menor de idade, acompanhado, não bate com a descrição do criminoso. Genial esse meu subconsciente.

De toda forma, nos mandam aguardar na chuva. Já estou sozinho de novo. Engraçado que quando mandam esperar na chuva, não chove; assim que alcanço o pátio, no entanto, chove torrencialmente. Todos os judeus correm alucinadamente para se proteger, entram em seus carros e zarpam. A cena é bem, mas bem similar a uma do Último Portal. Aliás, aquela diaba é misteriosa, hein?!

Caminho desolado pela chuva e já sou eu novamente, sem risco ou medo de detenção, e deixo para trás uma irmã paraplégica. Caminho por ruas e viadutos chorando – na impossibilidade de correr, a chuva passa de segunda a primeira melhor alternativa para disfarçar lágrimas.

Para atravessar um viaduto, percebo que existe um atalho de terra fofa, com uma espécie de folhagem macia. Cães gigantes e calmos me observam. Apesar de calmos, não se engane, são igualmente amedrontadores, e na tentativa de não exalar o cheiro do medo, rolo na terra fofa, quase caio num precipício antes de me segurar em algo que não conseguiria descrever em mil palavras, afinal uma basta: cipó. Passa um menino sujo, o mesmo menino em que me havia transformado parágrafos atrás, e diz que para ele, esses caminhos mais curtos são fáceis. Os cachorros lhe sorriem. Solto do cipó.

Acordo em uma cama muito louca do séc. XVII ou de quando seja, mas é pomposa, bela e inusitada. Em lugar da cabeceira, uma cortina suave, mais como um véu, guarda o berço de um bebê. Pego ele no colo e vejo que sou eu. Todas as manhãs, sou o primeiro a vê-lo. O quarto também tem mais tamanho de Apartamentos de Napoleão que propriamente um quarto de dormir pós moderno. Me coloco no berço novamente, com cuidado, e caminho até a varanda.

Lá, me espera uma mulher loira muito esguia e sorridente. Apesar dos olhos suaves, tenho certeza de que não é flor que se cheire, e por isso lembro que por isso gosto dela. Sem que digamos palavras, um pássaro cinza claro voa para dentro da varanda. Ele é bem redondinho, fofo, parece que suas penas ainda são penugem. Parece um filhote. Ficamos sem palavras, mas dizemos muito ao trocar olhares.

Antes que nos volte a fala, toda uma revoada de pássaros similares inunda a enorme varanda. Eles passeiam desajeitada e divertidamente pelo chão e parapeito. Pego na mão o primeiro dos visitantes que chegou. Um cachorro late, e o filhote de pássaro imita absolutamente igual. São filhotes de coruja, e não farão por menos ao mostrar sua tão precoce sabedoria.

Depois de latir, a corujinha conversa comigo. Olho para a mulher loira, igualmente perplexa. Conversamos rapidamente sobre o sentido da vida, algo que não poderia explicar em mil palavras e que se passou em milissegundos e que se esvaiu em uma fração disso. A corujinha cinza claro, bico e garras de rapina pretas, toda de penugem e chamego em minhas mãos. Digo que preciso que ela fique, ou ao menos gostaria. Ela retruca:

- Você certamente quer, mas seguramente não precisa. Segure a mente e não encontrará resposta mais precisa.

A mulher loira me observa, sorri ternamente, faz um gesto com os braços que não assusta, apenas conduz à debandada de todas as corujinhas. A que estava em minhas mãos é a última a partir. A mulher se volta para mim e então ganha voz:

- Você sabe que elas serão mais felizes soltas, apenas não quer abrir mão.

Sua mão fecha sobre a minha, entramos novamente no quarto e apesar do sonho acabar, creio que estava indo cuidar do bebê.

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quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

LIMPANDO O QUARTO

Tudo começa em um julgamento pela guarda de uma criança. O Tribunal não tem nada de tradicional, e por aí já vemos que se trata de um sonho – em vez de pompa e Madeira entalhada, metal e lycra.

Estou sentado em um dos assentos desses que sim, são tradicionais em repartições públicas, desses que parecem um monte de cadeiras, mas são na verdade presas a uma única base, o que faz de cada uma delas parte de um banco. O ruim disso é determinar o tamanho médio daqueles que se vão por ali sentar, uma vez que a ergonomia deve ser universal nesses casos. Essa frase me lembra dois momentos escolares: bem jovem, com as carteiras cujos assentos eram fixos e a distância entre eles e a mesa, imutável; e menos jovem, mas ainda muito jovem para ser adulto, na escola de design, onde aulas de ergonomia eram lecionadas para desconfortados estudantes naquelas pequenas carteiras sobre as quais não cabem mais que um post-it e um lápis já meio gasto.

Bem, estou sentado nesse assento, e à minha esquerda, dois assentos distante, descansa uma tensa mulher. Deduzo ser a mãe. Apesar de agora não me lembrar nada sobre ela, lembro que era conhecida, jovem e se não exatamente bela, ainda tinha boas chances de encontrar um marido. À minha direita, a mesa da juíza em metal e lycra [antes que se empolgue, falo da mesa, não da juíza].

O meirinho chama alto a testemunha principal do caso: “Daniel!”. O clima é grave, mas como o sonho é meu, naturalmente sei que não se trata de mim. E justamente por isso, não me incomodo – muito pelo contrário – e sim me animo em fazer uma inevitável piada: “Bem, se fazes tanta questão de um Daniel, tendes um aqui, mas receio que não te sirva para muito”. A mulher me olha indiferente, o meirinho com raiva, um pai com desdém, a juíza com seriedade, a criança ruiva com um sorriso. Me sinto como no episódio de Seinfeld quando Jerry e George vão para L.A. e o comediante perde no hotel o guardanapo com uma ideia de piada – não sei se contei mal como ele o fez, ou se realmente o que me lembro é sem graça, assim como se passa com ele. Mas bem, sigo o mestre.

Te garanto que o tal Daniel chega no momento exato antes que eu derreta de tédio. Ele entra seguro, elegante. Tenho certeza de que já namorou a Jennifer Aninston. Quisera eu ser esse Daniel. Se bem que esse Daniel de fato não tem esse nome, e de fato não importa sabê-lo agora. Aliás, como ator, ele está mais que acostumado a ser chamado de outras coisas. Daniel ou não, ele namorou a Jennifer Aninston e entrou no recinto, palmas! Ordem.

O pai da criança está ainda mais à esquerda que a mãe, não há advogados. A ruivinha tenta contar uma história em que ninguém presta atenção. Percebo sua angústia quando começa a se enrolar e enfiar pela lycra prateada que forma a frente da mesa. Ninguém dá a minima para a criança, é como se ela não estivesse ali. Sou o único a ver a cena, e como espectador sou o único que não pode fazer coisa alguma. O pai olha pra mim repreensivo, e para ela ainda mais.

Percebo que é melhor me retirar das ala por alguns instantes. Ao sair, vejo na sala contígua uma reconstituição em pleno curso, uma criança de pele escura segura uma submetralhadora mais pesada que seu corpo e acua a todos. Antes de largá-la e dizer “foi assim, e então matou todos”, confesso que acreditava na capacidade do garoto em render todos ali. Mas tratava simplesmente dele contando como presenciara uma chacina ou coisa assim, nada demais. Até sua mãe estava presente e consentia com a cabeça.

Isso tudo me parecia normal, inclusive e especialmente o fato de que todos falavam espanhol. Bem, como compreendo e não preciso dizer muito, tudo bem.

Dou uma volta pelo local e em todas as salas acontece algo igualmente estranho e castellano. Sempre alguma acusação, tramoia, chame como queira, mas nunca era bonito aos olhos de quem aprecia apenas e tão somente arte clássica.

De repente, num corte seco seguro com a mão direita uma caneta de nankin e tenho sobre a mesa um autorretrato feito em pontilhismo. A obra está incompleta, me parecendo que completá-la é justamente o que me cabe naquele momento. Paro por um instante para imaginar como seria a engenhoca ou a fraude que haveria armado para conseguir fazer um autorretrato de costas. Explico: no desenho, estou naquele enquadramento clássico do contraplano, onde se pode ver meu ombro, minha nuca, orelha direita, um pouco do olho e sobrancelha e, claro, nariz. Percebo que estou mais cabeludo no desenho, e de barba longa. Logo, de duas uma: ou o desenho é antigo e preciso terminar de cabeça, ou não sou eu, ou cortei o cabelo recentemente, o que explicaria a engenhoca para me ver desse ângulo: um simples espelho fixo e outro móvel. Não, não tem um erro de matemática ou o que seja aqui. Isso é problema meu.

O espaço ainda não coberto por pontos ocupa a exata posição onde estaria um livro em minhas mãos, mas nessa região não há absolutamente nenhum ponto. Encosto o bico da caneta sobre o papel mais inclinado do que deveria, e apesar de rapidamente preencher todo o espaço, o tamanho, espessura e angulação dos pontos não combina com o resto do desenho, que está arruinado.

Penso que a única forma de consertar é fazendo um livro completamente negro e um óculos. Penso que o livro que poderia ter em mãos somente poderia ser negro, e somente poderia ser compreendido por intelectuais. No entanto, o livro negro em contraste ao pontilhismo chamaria atenção demais, o que poderia ou não ser positivo. Mas não havia escolha a não ser isso ou renunciar. Isso ou começar de novo, o que não parece de todo mal.

Levanto a tampa da escrivaninha sobre a qual repousam um monte de brinquedos coloridos certamente não da minha época. Lá dentro, muita coisa que me lembra dos tempos de escola. Na verdade, todas elas: livros, cadernos, tudo. Tudo empoeirado, largado. Saem também fotos de celebridades femininas dos anos 80 e 90 vestidas de noiva, bem démodé. Lembro de nunca tê-las colocado ali, mas ali estavam. Observo o espaço interior da escrivaninha e penso que com uma boa limpeza, algumas coisas podem ser colecionadas, e o espaço aproveitado.

Olho para cima enquanto arranco a tampa da mesa, e vejo a prateleira de Madeira rústica e vagabunda, sem acabamento. Vejo a falha na textura claramente, bem de perto. Sobre ela, coleções de livros que não me serviriam para nada mais que uns recortes, digitalizações e colagens. Aliás, abro um outro armário e encontro alguns periféricos antigos, amarelados e empoeirados. Scanner, impressora, zip drive, junto com mais um monte de entulho. Muito pó e a sensação de que não vai ter fim.

Me volto para o quarto, e todo ele está do mesmo jeito: coisas, sacolas, caixas, tudo jogado. Se algo ali presta, precisaremos de muita paciência para encontrar. Livros infantis, periféricos antigos, poeira, sacolas, aaaaaaa! Quando começo a me irritar com a impossibilidade de fazer algo, toca a campainha e me surge uma necessidade absoluta de parar de brigar. Especialmente parar de brigar as brigas que já estão vencidas e, portanto, ao mesmo tempo e inevitavelmente, perdidas. Depende apenas do ponto de vista.

Creio que esse é o sonho mais Eminem quem já tive, se bem que não sei muito do cara.

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segunda-feira, 7 de novembro de 2011

JE M’APPELLE JEAN-CLAUDE

“É preciso encontrar a forma perfeita para não deformar a fôrma que a personagem principal – e única – precisa ter. É precisamente a fórmula de um sucesso ou fracasso”. Assim falou o ego excêntrico do egocêntrico autor. Era preciso encontrar um ator.

Todos pareciam ouvir com atenção as delicadezas da rude forma de falar. Bem, as delicadezas estavam lá para quem as quisesse escutar; no entanto, pelos olhares, talvez apenas a forma de falar estivesse pela maioria sendo apreendida. Poucos pareciam de fato aprender algo do arrogante, mas frutífero discurso. Não obstante, haviam aqueles que pareciam compreender.

Forma e conteúdo: imprescindíveis, mas difíceis de conciliar. Eu mesmo havia pensado em uma forma incrível para descrever um sonho, este que ainda me faltava. Pois bem, o tive e deixei escorrer pelos cílios. Cá estou, sem forma nem conteúdo, contando a história de ego excêntrico entediado.
“Essa peça não é sobre minha pessoa, apesar de versar e prosear sobre mim. Trata da humanidade, que precisa ser representada no indivíduo a fim de extrair do particular, o todo”.

Aqueles que eram dispensáveis foram dispensados sem demora. Cá estamos sob o teto reformado de uma antiga casa restaurada, mas não remodelada. A casa decerto me foi dada por uma fatalidade. Sou grato por ela ter aterrissado antes da fatal idade me ter acometido. Cacófato? Sim ou não. Me torno o próprio autor, e todas as pessoas saem de cena, a não ser o canhoto e o destro.

Curioso o que noto mentalmente: o canhoto tem destrezas confiáveis, enquanto no destro não se pode confiar direito. Não obstante, falo com ambos.

“Quem por fatalidade sentar na primeira fila, é porque quer de perto ver a verdade, de que cor é a saudade, não será indiferente se o ator indecente não desempenhar decentemente o papel do descrente que quer acreditar. Não, nisso ninguém poderá”.

O canhoto toma notas, o destro as destrói. Falo como se fosse um disco preparado para nunca parar. Os olhos das fechaduras de um cômodo me observam sem parar. Voyeur eu, voyeur você. Projeção. O maior sádico é aquele que quer apanhar? Não consigo diferenciar o que falo do que penso, apesar de serem evidentemente duas coisas distintas. O fato falado não sobrepõe o fato pensado, ambos não substituem o fato vivido, é preciso precisão com o fato encenado. Em cena, tudo será decifrado!

Articulo sobre as opções de quem poderiam ser os atores ideais para a performance nada usual. Tenho certeza de que estou dormindo, e penso que se estivesse acordado e todas as coisas precisassem fazer sentido, e se todas as ambições do mundo pudessem ser sonhadas com um mínimo de chance de serem realizadas, acordado sonharia de olhos abertos ou vendados que Adrien Brody era o verdadeiro e perfeito nariz para o papel. Ahn?! Rá!

Mas como sei que estou sonhando, sei que as coisas não precisam necessariamente fazer algum grave sentido coerente aparente e consequente. Por isso, em vez de falar do pianista, olho bem na íris de uma nariguda maçaneta e percebo que ela guarda um quarto onde nunca entrei, mas onde certamente existe um cofre de cuja combinação nada sei, e cuja chave jamais avistei, e cujo conteúdo jamais sonhei. A cor da verdade é verde, a textura é madeira. O animal é coruja. O olho é de botão. Ah, maçaneta, você com esse nariz torto pra esquerda e essa cara ranzinza, só falta o chapéu pra ser um guarda real da Guarda Real. Será que o que guarda é real?

Não presto atenção em nada do que não me dizem, e me vem a frase à cabeça: Retroceder, nunca; render-se, jamais!

Imediatamente me vem a certeza de que é ele quem deve fazer o papel, afinal estou sonhando e nada disso precisa fazer sentido. A cena que me faz convencer os produtores é dele dançando no palco do programa de auditório junto à Gretchen, com uma camiseta pra dentro de uma calça jeans semi-bag, desbotada bem 80’s na cândida, plateia em polvorosa. Sua falta de noção e a surrealidade da fagulha de ideia o fazem ideal para uma improvável escolha. Esse monólogo já tem dono, e sou eu. Mas a personagem será interpretada por alguém de muita coragem e pouco bom senso: Jean-Claude Van Damme.

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quarta-feira, 26 de outubro de 2011

PEÇA À TERCEIRA PESSOA – UM MONÓLOGO EXTRAPSICOLÓGICO

[Uma pesada cortina de veludo alemão vermelho guarda o palco dos olhares do público. O clima de ansiedade e animosidade é necessário, e garantido por atrasos sistematicamente maiores a cada apresentação, até que se descubra a progressão utilizada, quando então deve-se pensar em outra forma de irritar a plateia. Ouvimos os passos secos de uma bota francesa de cromo alemão e sola de madeira, que cessam ao atingir a precisa metade do palco. Um spot de luz frontal acende ruidosamente sobre o orador, que reage abrupta, mas comedidamente até se adaptar à luz nos olhos e começar a falar na boca de cena, entre a cortina e o precipício que separa o ator da nervosa audiência.]

- Alunos e alunas aplicados/as sempre às exatas, até mesmo às biológicas, mas nunca às humanas. Isso tudo pode ser chamado démodé ou outro termo na nova escola, mas a história é da velha e os termos são esses. A velha, conhecida obsessão matemática aplicada à gramática.

O orador caminha pela boca de cena.

- Assim como menos com menos dá mais, mais com mais dá mais; apenas menos com mais – ou vice-versa – dá menos. Portanto, depois de aplicada essa micropílula de sabedoria popular, a pergunta de um milhão de dólares seria [Antes de selar o acordo, diga – é capaz de honrá-lo? Bem, meu rapaz, para sua sorte ou azar, não importa, pois não há tempo para a resposta!], retomando, a pergunta de um milhão de dólares seria: como não existem no mundo mais números positivos que negativos? Extende-se ao infinito e além, até onde ecoar, a questão.

O final dessa frase ecoa e reverbera gravemente. Uma lousa desce do teto pendurada por cordas.

- Ao passo que chegamos em três parágrafos ao cerne da questão, fato que não deve ser outra coisa que não coincidência, algo assim para apenas afirmar pela negação do contrário*. Não obstante, se não vamos aqui deixar à deriva os números, que a tese surja de acordo com o titulo. Pois bem, lá vai ou lá vem: a terceira pessoa do singular está sempre no extremo oposto do espectro de onda referente aos pronomes relativos quando comparada à terceira pessoa do plural; para cima ou para baixo e qual, isso depende de onde se firma o tripé do observador, variando ele e eles como inclusivos ou exclusivos, invariavelmente, e de certa forma até concomitante e inevitavelmente, incluindo nessa oposição a valência de cada um dos termos.

A seguinte frase é escrita pelo orador no quadro: 7r35 3’ m35m0 um núm3r0 m4’g1c0, s3 3ss3 73rm0 pod3 d3 f4t0 3x1571r.

[*Ideia para outra estória: um jovem rebelde, adolescente filho de pais bastante inteligentes, que decide se tatuar às escondidas pelo simples prazer do perigo, uma vez que seus pais são também bastante liberais, e escolhe um dizer bastante categórico e vermelho para pintar de preto a pele com “eu não me afirmo pela negação do contrário”. A trama se desenrola na frustração do pai ao não conseguir nenhuma de duas coisas: 1) compreender a razão do ocorrido; e 2) fazer com que o filho compreenda onde está a verdadeira inaceitabilidade do evento. Rever O Bebê de Rosemary. A criança pode se chamar Edgard, pô!]

- Sábio ou apenas paciente você que até aqui chegou, saiba que a primeira fase deste vestibular já passou, e servia apenas para despistar os caça-tesouros, descartar os idiotas e filtrar os verdadeiramente dignos. Se chegou até aqui, parabéns! Um Zé-Ninguém lhe confere o titulo de Doutor de Absolutamente Porra Nenhuma. Em reconhecimento ao empenho empregado, a verdadeira estória a seguir.

[O foco de luz se apaga ainda com o orador em riste, que veste regata preta cotelê corte italiano, boné trucker, um relógio de bolso dourado, calça jeans rasgada e a bota. Óculos de hastes douradas penduram-se sobre o nariz, equilibrando-se. Abrem-se as pesadas cortinas vermelhas de veludo alemão. Aura de Lynch no clube. Silêncio. Não há banda. Início Primeiro Ato.]

O orador se movimenta para trás. Cenário simples, minimalista, tábuas corridas e um banquinho de madeira rosa com três pés no exato centro do palco. Magicamente, se veste de outra maneira: calça branca feminina de cintura baixa, camisa xadrez em tons predominantes de verde e um velho All Star cheio de potencial explorado, cor de vinho seco, um Malbec bem específico. O spot não vem mais de frente, só que de cima, fazendo o orador praticamente não ser mais ele mesmo, mas seu próprio nariz. Sua barba cresceu. Acima do banquinho há um conjunto de cordas grossas de sisal, perfeitamente imóveis e perfiladas paralelamente à boca de cena, na mesma profundidade do baquinho. O orador não senta, mas se empoleira sobre ele, equilibrando-se com apenas um dos pés, o esquerdo. “Vai, Carlos! ser gauche na vida”.

- Meu caro espectador, o ingresso é caro, mas nem por isso vou deixar de cobrar de você. Afinal, foi você quem escolheu estar aqui; caso não seja seu caso, tanto pior e ainda mais se foi você quem pagou. Mas a vida de artista não é fácil, mesmo sem ser você há de convir se apenas um pouco pensar. É fácil não ter o que fazer? É fácil buscar uma voz para se expressar, mesmo que não saia de você e no entanto represente tudo que você lá dentro diz a si mesmo sem conseguir escutar, só sentir? Você entrou aqui trazido por suas próprias pernas, o que cria a chamada demanda nas suas regras de oferta e preço, portanto agora quem está no controle sou eu. Como em combates aéreos clássicos da Primeira Grande Guerra, pilotei meu avião até mais alto acima de você, eu sob ataque, até que enquanto me mantinha ainda firme em subida, você se curvou e cedeu. Nesse momento eu inverti o loop, e agora seu motor está desligado e você, em queda livre. Meu caro espectador, o ingresso é caro mas vou exigir de você. Saia da zona de conforto onde toda sua falta de atitude é muito bem justificada pelos gastos em dinheiro. Você compra o mundo para não fazer nada? Pois bem, tranquem as portas! Só sairão daqui depois de pensar e refletir muito!

O orador salta suavemente enquanto termina a frase, agarra precisa e firmemente uma das cordas e aterrissa no chão com o pé esquerdo. Luzes brancas e fortes acendem ruidosamente contra a plateia, ao mesmo tempo que uma cortina de veludo cotelê no fundo do palco despenca até o solo, revelando por trás de si um gigantesco espelho de moldura rococó. O espelho reflete absolutamente todas as pessoas, de todos os ângulos. O barulho das portas ao fundo da plateia sendo trancadas beira o claustrofóbico.

- Meu caro espectador, o ingresso é caro, então peço-lhe que confie no que vou lhe confiar em segredo, sob pena de, em se deixando de ser segredo, transformar-se em traição. Primeiro de tudo, que tal a sensação da luz forte lhe cegando os olhos inadvertidamente? Quando foi comigo ele se divertiu!

Orador aponta para um tipo na plateia e pergunta, olhando o tipo nos olhos enquanto aponta para outras pessoas e passeia pelo corredor de acesso às poltronas:

- E eles, riram de mim? E agora, vai dedurá-los, retratar-se comigo ou juntar-se a eles? Meu caro espectador, o ingresso é caro, e a pergunta é retórica. A porta está trancada e você não pode evitar de refletir. E todos podem ver o que reflete. Assim, vestidos e refletidos, ternos e vestidos são tanto quanto nada. Estão todos nus perante os demais, despidos, desprovidos de proteção, enquanto o único vestido sou eu!

Em um gesto seco, rápido e preciso como uma navalha, puxa sua roupa violentamente para frente. Ela cai, o orador está nu.

- Meu caro espectador, o ingresso é caro, mas você não veio aqui para menos do que vou impor. Exijo sua abstração, exijo total soltura das suas funções psicológicas, exijo que se entregue. Exijo atenção. Ouça com atenção em vez de apenas escutar. Em vez de ficar só olhando, me veja. Solte a direção de arte da história cujo roteiro sou eu quem vai contar. Meu espectador ilustre, não precisa criar, ilustre. Eu exijo sua abstração. Não tem cenário que não possa existir, simplesmente porque aqui não há nenhum. Aprendam a se sentir confortáveis com toda essa exposição, eu lhes garanto, se todos podem se olhar, ninguém vai lembrar que se viu.

As luzes diminuem. O orador retorna ao palco e puxa outra corda. Jatos de água caem do alto formando palavras:

VOCÊ ESTÁ
PRESTANDO
ATENÇÃO?

A hidrotecnia dura cerca de 13 segundos, tempo suficiente para o orador se vestir com uma calça preta de zíper prata e malha-de-lã teia-de-aranha cor-de-abelha. Caminha descalço com um par de coturnos pretos nas mãos em direção ao banquinho, sobre o qual senta. Tira de dentro do coturno esquerdo um pé de meia preta e começa a vestir no pé esquerdo lentamente, olhando para o nada, como que refletindo sobre as próximas palavras. Pega a meia direita, faz que não com a cabeça, larga a meia e calça o coturno esquerdo enquanto começa a falar:

- Caro espectador, o ingresso é caro, e por isso exijo sua abstração. Agentes secretos se infiltram na vida de uma mulher. São dois. Um deles já está infiltrado dentro da vida do outro, ou seja, dois níveis pra quem sabe da Origem. O primeiro agente se infiltra como agente mesmo na vida do segundo. Ambos se infiltram na vida da mulher: o mais belo como faxineiro do prédio, o mais rico como pretendente.

A essa altura, o orador deixa de lado o pé direito do coturno e põe-se a manquitolar de um lado para o outro do palco rápida e freneticamente.

- O pretendente e a mulher estão em um encontro na casa dela quando aparece, tarde da noite, o bonitão da limpeza. O que ambos querem? Acima disso, quem são eles? Quem é ela? Quem são eles pra ela? Quem está encenando?Já pedi antes que confiassem em mim, e afinal não têm escolha. Vou precisar que se mantenham calmos, quietos e extremamente concentrados em 3, 2, 1...

[Todas as luzes se apagam, novamente com ruído. Passam 3 minutos assim, até que o spot vertical se acenda novamente sobre o banquinho. Agora o orador está sentado com a cabeça apoiada sobre o punho, mimeticamente análogo ao famoso pensador de bronze. Calça apenas o coturno direito, sem calça ou nada mais. Cabelo e barba raspados bem rente. Início Segundo Ato.]

A voz do orador soa, mas sua cabeça e maxilar estão imóveis.

- A soma das unidades desse parágrafo é 13, não perca seu tempo contando, já adianto que não adianta. Prostitutas invadem um veículo e obrigam a dirigir em direção a uma tal mansão. Quando um semáforo fecha, uma necessidade incontrolável de estacionar. Uma irmã surge e conduz sorridente para dentro de uma casa imensa, um loft gigante que poderia ser uma fábrica de automóveis. Primeiro uma pergunta sobre um piso de tábuas corridas bem lindas e longas, que é belo e caro. Depois ao videogame ultrarrealista com um jogo de boxe controlado por sensores de movimento. Ao primeiro soco recebido, prazer. Ao primeiro proferido e acertado, um buraco no estômago. Está tudo bem? Não! Corram daqui, busquem aqueles que se importam, busquem aqueles com quem se importam, vão, busquem o seu amor, já é hora. Vão, ou será tarde demais e será tudo em vão, vão logo antes que as oportunidades se fechem e não sobre um vão, vão! Peçam à terceira pessoa para quem contarem que venham até aqui. Peçam à terceira pessoa que vejam essa peça!

Surge magicamente um Kadet Turim automático 1990 sobre o palco, em cujo banco do motorista o orador já se encontra. A frente do carro está voltada para a esquerda do palco. O orador encerra:

- 1990, e ainda ele ainda está fazendo um grande trabalho!

Pisa fundo no acelerador, mas o câmbio está no N, de forma que só aumenta o ronco do motor. Uma câmera bem sobre o câmbio capta a imagem da alavanca, que é projetada sobre uma tela que ocupa o lugar onde ficava o gigantesco espelho de antes.

- São de 1990, e eles já estão fazendo um grande trabalho.

Na projeção, percebe-se a mão do orador puxando a alavanca até o D. Ele faz um sinal da cruz todo errado e ora:

- Affe, Maria, chega de graça. O senhor é tão lindo! Meu caro espectador, o ingresso é caro e você já perdeu tempo demais!

Nisso, acelera com força, os pneus cantam e o automóvel se move velozmente para a coxia, deixando para trás um rastro de fumaça. Em 13 segundos, ouve-se um violento barulho de acidente, todas as luzes se acendem, as portas do fundo são abertas e o orador está no saguão para receber os cumprimentos.

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