quarta-feira, 21 de maio de 2014

A FUNDO A MORAL

De repente saímos de um trem sem passado, como se tivéssemos recém acordado, quando de fato o mais evidente é que acabáramos de adormecer. Saímos você, eu e mais algumas daquelas pessoas que na hora parecem muito familiares, na alvorada parecem ninguém, e com quem quando cruzamos passamos vivemos um misto de epifania com ansiedade e rogamos para São Longuinho. Rápido notaria-se que as roupas que nos vestiam, essas tinham muito passado. Nossos semblantes denotavam que por muito havíamos passado, apesar da época ser outra, anterior à nossa, e de termos as mentes jovens.

A construção onde chegávamos tinha dois aposentos íntimos, cada um com seu proprietário. Ambos carecas e igualmente cruéis. As mulheres conosco, todas, foram rapidamente tomadas pela consciência de que aqueles serem lhes imporiam atos pouco ou nada humanos. Minha subconsciência deixou analisar até aí, sem entrar nos méritos do que seria isso. Talvez porque depois de tanto tempo sem passear por essas bandas mais hetéreas, tenha contraído de volta uma certa reticência quanto à liberdade de que posso me servir.

De toda maneira, sabia que de bom daqueles quartos sairiam apenas vítimas.

A sujeira cobria boa parte de nossas peles, de forma que os olhos e olhares se tornavam ainda mais expressivos. O trabalho forçado e escravo que nos recusávamos a prestar com atenção era tão compulsivo quanto patológico, com a diferença que da patologia, quem padecia não eram os trabalhadores.

Logo notei na indumentária dos que nenhum cabelo mantinham um símbolo que foi ressignificado na década de 1930 e que é quase tão imoral quanto nossas mentes em seu refúgio mais seguro e profundo, aquele que não se carrega senão na lembrança. Após instantes que duraram horas nesse lugar campestre e pronto para chafurdar, parecia que muito tempo havia passado e que muita coisa ruim havia acontecido e que muita lembrança havia sido deixada de lado em nome da sanidade, mesmo que muito próximo da tênue linha que nos separa da sandice. A mente sabe bem esses limites, e consegue andar bem reto ou torto tanto quanto necessite sem deixar de ser marginal desse rio caudaloso e feroz que arrasta os que se soltam corredeira abaixo em um mergulho sem volta.

Notei em seu olhar, no entanto, o peso de todas as coisas que se recusava lembrar conscientemente, e vi outros fazendo como havia eu mesmo feito outras vezes, buscando em cada pedaço de tranqueira velha uma peça de ligação com um mundo mais sensato que nos resgataria daquela situação vexatória para quem a impunha.

Acompanhei com o pensamento seus passos cuidadosos ao adentrar o recinto do mais chefe dos algozes, que dormia em uma espécie de macacão de malha arrastão vermelho, como uma meia-calça que fingia tampar todo seu corpo e nada mais. Ele dormia banguela enquanto seu dedo deslizava pela coroa do isqueiro. O caminho de rato se acendeu no chão, e com a calma de um pavio de vela o fogo se alastrou. Subiu pelo pé direito, percorreu a perna dobrada e ardeu no púbis do culpado pela nossa condição. Subiu mais pelo corpo todo, que não se movia, até chegar pelo queixo à boca, a única que se mexeu imediatamente após abrirem tranquilos os olhos do ser que não agonizava da dor que de fora parecia sentir. Ardiam chamas precisas, cirúrgicas, que não se alastravam mas tinham cor de solda capaz de fundir metal de imediato. Sem sentir-se culpado, pronunciou:

– Imaginou que fosse reclamando de dor que haveria eu de ter me tornado quem sou?

O instante seguinte me encheu da sensação de liberdade, que até agora não entendo se é oriunda da situação ou apesar dela. Libertar-se da dor de algo imoral é não distorcer a noção de moral, que é subjetiva, mas justamente por sê-lo, compreendê-la. Porque a subjetividade que precisa compor a moral é crua demais para se digerir fácil. Nosso estado de vigília não é sempre que tem o desapego de aceitá-la. Até dela, nossa própria, nós próprios nos escondemos.

A verdade é que não sentia durante tempo algum remorso ou culpa ao ignorar aquilo que não via, não sabia nem imaginava.

Nenhum comentário:

Postar um comentário