quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Argumento

- Querida, acho que tive uma ideia.

- Outra?

- É uma história.

- Que roupa eu ponho?

- Acho que podia dar um livro, ou um filme.

- Gosta dessa blusa?

- Ou pelo menos um conto. Escuta.

- Dá pra prestar atenção em mim?

- Imagina uma casa de senhoras. Não um puteiro, mas uma casa onde moram várias senhoras de idade. Aí numa noite essa casa é invadida por um trio de malfeitores. Na manhã seguinte, o fato de não terem levado nada deixa de ser o motivo dos comentários gerais, pois dá lugar ao fato, outro, de que três das moradoras da casa, senhoras de idade como as demais, estão grávidas. É um verdadeiro furor. Não bastasse o absurdo de estarem grávidas após longa abstenção, de terem cruzado a menopausa, vencido os calores há muito, o que ainda agravava o espanto eram as barrigas, que literalmente surgiram da noite para o dia. Tudo isso é pra contextualizar a história. Na verdade o conflito é verdadeiramente a impossibilidade das senhoras cuidarem dos filhos e vê-los crescer. Aos poucos elas se apegam aos filhos que carregam, o mesmo acontece com toda a casa. Sabe-se que uma carrega um menino; outra, uma menina. A terceira, com a barriga mais quadrada, não sabe se o sexo é certo, não quis saber de sexo. O que se sabe apenas e com certeza sobre as crianças, é que será essa, a indefinida, a mais bem sucedida. Quanto às mães, sabe-se que vão morrer.

- Meu deus, essa história não poderia ser MAIS bizarra?

- Deus?! Você acredita nesse conceito?

- Você não?

- É por isso que te amo!

- Oi?!

- Nunca perde a capacidade de se surpreender.

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quarta-feira, 24 de março de 2010

BODE COMEÇA COM B DE BRAINSTORM

Os quatro tomavam banho nesse aquecido brainstorm. Uma tempestade de ideias. Tão forte e tão frutífera que o sumo das laranjas encharcava o recém construído e lixado e raspado e pintado – no entanto ainda não impermeabilizado – piso do banheiro. Nunca fui de grandes frescuras, mas estragar o trabalho de um dia inteiro feito por trabalhadores braçais dedicados não era meu ideal de respeito.

Olhem aqui, seus criativos, quer dizer que a nova e brilhante ideia de vocês é fazer brainstorm sem box nem cortina, desnudos, como se isso os colocasse em condição de igualdade frente aos demais, todos iguais? Pois bem, façam o que quiserem, contanto que mantenham essa maldita chuva e perversidão longe desse piso.

Me parecia que mesmo tendo oito boxes à disposição, com lindas portas de vidro, preferiam a anarquia e a algazarra de tanto deixar as portas abertas quanto não usar as benditas cortinas plásticas.

Percebi em um canto que cada um havia trazido a sua cortina, mas queriam utilizá-las para manterem-se secos acima de tudo. Enervei-me, e não pude conter o ímpeto de esbravejar como um professor colegial que ensina o mais elementar a uma mente que se julga brilhante e saciada de todo o conhecimento de que precisa. Mentes arrogantes a dos criativos e dos adolescentes... Ensinei que a ideia de um banho é molhar a si mesmo, e manter o resto da agência ou casa ou vestiário secos. Por isso as portas de vidro. Em inglês, “keep it to yourself”.

Bem, comecei a desenrolar as cortinas a fim de pendurá-las corretamente e preservar o pouco que sobrevivera aos respingos de piadas sem graça. Os adolescentes – sim, mentalidades adolescentes – assustavam a cada gesto. Uma mocinha entrou pela porta extremamente doente, trêmula, cambaleante, quando um deles foi em sua direção ampará-la. Eu, que não era médico, imaginei que aquilo só poderia ser fruto de muito exercício para as pernas seguidos por costelas de porco cobertas com cisticercos.

Voltei novamente para a tarefa de pendurar as cortinas e um dos malandrinhos se escorou pesadamente sobre meus ombros, do que reclamei sem piedade até perceber que ele estava mal das pernas. Não iria pendurar a toalha, não vendo aquele rapaz em tal situação.

Parecia mais um caso de exercício exagerado e alimentação descabida, mas nesse eu confiava o suficiente para acreditar que estava mal. Olhei pela janela e vi que nevava, o que explicava a tremedeira. Vesti-os um a um e mandei que tomassem um trem na estação com destino ao aeroporto, voltando imediatamente às suas casas. Isso feito, botei-me a ler um artigo que versava sobre as novas profissões de antigos criativos.

O excerto que mais me interessou foi sobre a quantidade deles que passou a cabeleireiro, afinal quantos deles deixam de ser absolutamente vaidosos com suas madeixas? Poucos, raros, nem mesmo os que abriram mão de utilizá-las. E no meio da leitura vejo que um desses jovens chegou aos trinta praticamente calvo, e isso o fez reduzir o risco de desenvolver câncer de próstata em 29%. Entendi que a cada ano que se passa perdendo cabelo até a data que se completa 30 é responsável por um acréscimo de 1% na sua chance de sobrevivência, por assim dizer. E o ilustre jovem que ilustrava esse neco de cultura era conhecido meu de algum tempo. Vi-o completar trinta ao mesmo tempo que perdia os fios.

Olhei pela janela e vi que era ele mesmo quem cortava cabelos dentro daquele gol onde criança nenhuma conseguia marcar, tendo em vista a altura da neve e o quanto eram pernas de pau vestindo aquelas botas de gelo e carneiro. Detive-me à sua imagem um instante, e percebi que era tanto cabeleireiro quanto goleiro, ao que concluí “largar a vida de criativo pode ser cansativo, é preciso muitas vezes fazer jornada dupla em trabalhos cansativos, é o preço que se paga para ser feliz”.

Olhei para minhas mãos com a intenção de arranjar uma ideia criativa para algo a fazer com elas, e dei conta que estavam pálidas e verdes. O grande mal de ser diretor de arte é que você nunca mais admira o mundo como é, mas como poderia ser feito na sua tela. Um diz “imagine uma pequena esfera dourada”, e você logo se pega de olhos fechados imaginando a textura, movimentos de câmera, posição da luz, se é 3D ou simulação... um saco, uma grande merda que o mantém afastado do nível de consciência avançado.

Mas que meus dedos estavam verdes é um fato, e meus olhos inchados como Rocky. O doente de toda a história sempre fui eu. Agora apodrecia sozinh depois de expulsar todos dos arredores, à exceção de uma tia que era mais como uma mãe e me vinha cuidar a cada dois dias.

Olhava no espelho e a cada minuto mais sangue e linfa se acumulavam no entorno do meu olho direito. Não doía, mas escorria bastante. Alimentava-me de coisas que não ousaria escrever, digamos que um tipo de carne tão proibido e tão podre que seria digno de visitas póstumas e depósitos de flores. Minha última unha de comida jazia sobre um cesto de lixo, local mais apropriado dentro de uma casa não haveria, e tinha a cor de uma unha esmagada pela porta de um carro.

A tia falava ao telefone com alguém quem só fazia exigir meu retorno não por compaixão ou por necessidade, mas por mesquinharia e demonstração de poder. Ela dizia que não saberia se suportaria – eu – a viagem, e que aguardaria ao meu lado por dias melhores e principalmente a chegada de um clima mais transponível, com a esperança que trouxesse de carona boas pessoas e um remedia que me curasse a alma, dado que o corpo apenas refletia o quanto ela adoecera.

Deitei sobre um casaco de peles e o tempo foi suficiente apenas para perceber que antes de abir os olhos definitivamente, a neve ainda caía forte lá fora, os gritos de gol permaneciam contidos e muita gente ficava careca.


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sábado, 6 de março de 2010

SONHO, LOGO DESISTO

“A verdade é que parei de sonhar”. “É verdade que parei de sonhar”. Nenhuma das duas é a sentença correta para começar esse texto. A primeira tem muito de justificativa, mas em se tratando de um diálogo comigo mesmo a cobrança pode ser esquecida – me permito alguns momentos de ser pouco exigente comigo mesmo. A segunda tem muito de rumores. Um diz “parou de sonhar”. Dois diz “mentira!”. Três me questiona, e lá vou eu assumir que “sim, parei de sonhar”. Vamos lembrar que mora em mim um rebelde independente, fico feliz ao dizer que ninguém me lê e ninguém me cobra e ninguém me lembra, então nada disso vale, no entanto gerou devaneio suficiente para preencher o espaço de um parágrafo sem dizer praticamente absolutamente inconscientemente contraditoriamente demasiadamente nada. Tudo coisa da minha mente, que a mim só me fala a verdade – se acreditasse nisso piamente, seria a primeira prova de que em um caso eventual, ela mente. Eventualmente. Se mente, brotam paradoxos de mim mesmo, sementes das discórdia entre Daniel e Fernando, cada um em seu ombro, um destro e outro sinistro.

Bom, isso posto, os fatos: passei a dormir numa nuvem, abraçado por essa névoa que não me deixa deitar, e sim cair livremente pelo período de tempo que dure uma noite. Esse período cresceu, é excelente ver que muito menos vezes abri os olhos pra sempre às 2h da manhã. É excelente dar-se conta de que muito menos dias terminaram próximos às manhãs seguintes por motivos que me escapam ao controle. Bom, passei a dormir nessa nuvem, a mesma daqui do alto de onde escrevo hoje, um sábado véspera de segunda. É bom, passei a dormir nessa nuvem e pelas manhãs o inevitável: meus sonhos oníricos chovem como uma tempestade de verão, e o calor dos sonhos da vida acordada faz com que evaporem os pensamentos na mesma velocidade que caíram, tão quente estava o chão duro da realidade de cada dia. E então quem mora em São Paulo entende a sensação subseqüente – com trema, foda-se [maldito Word, tira a cobrinha vermelha debaixo dos palavrões, caralho – outra!] – do cheiro quente de asfalto e poeira molhados adentrando as narinas, expandindo primeiro os músculos do abdômen, depois afastando os músculos intercostais e as costelas, e por fim enchendo e expandindo os pulmões.

Imagine-se em uma aula de yoga. Em meio às técnicas respiratórias, os pranayamas. Imagine que tipo de prana seria retido dessa poeira e asfalto... não acredito que fosse muito energizante.

Mas nesse caso são meus sonhos que chovem da nuvem pela manhã, e evaporam com tamanha velocidade, aquecidos pelos sonhos da realidade. Leia você que interessante a dualidade: quanto mais sonhos na vida real, menos sonhos oníricos. Em vez de aburdos, tenho acordado com brilhantes idéias sobre como trocar os vidros de uma janela basculante emperrada no alto de um quarto andar sem acesso externo. Isso sim é um absurdo.

Só pra registrar a poesia que se esconde dentre tantas explicações, me repetirei, me permito.

De uns tempos pra cá, passei a dormir em uma nuvem. É muito vantajoso, muito confortável e me trouxe melhores, excelentes noite de sono como não sabia existir. O problema é que dormir bem me tira a lembrança dos sonhos, acho que durmo pesado demais. Não acordo mais 13 vezes em uma noite, não faço anotações, e se sonho, não lembro. Na verdade, tenho sonhado tanto acordado que ao pisar fora da nuvem tudo que sonhei chove, é m’Eu onírico que chora, que chove e não molha, é a temperatura do que sonho acordado aquecendo e evaporando tudo que sonhei de importante, é um vapor estranho que me enche as narinas e me esvazia os devaneios. Fico muito lúcido e consciente, a ponto de não conseguir assimilar apenas aquilo que eu mesmo desejar.

São evidentes indícios da nossa pós-modernidade.

Qual o quê! Sonhei e lembrei! Esqueçam a riqueza de detalhes, atenham-se às simbologias. Sonhos são frustrações, mesmo que passageiras. Todo sonho é uma frustração e uma realização em potencial, adoro os paradoxos. A verdade é que sonhar acordado não é nada mal. O mal seriam hojes cujos ontens não tivessem amanhã.

Estou em uma dessas imensas lojas de decoração cheias de ambientes vagabundamente perfeitos. Converso com alguém que não vejo, eu mesmo. Sou a câmera e o foco. Me falo sobre a vida olhando para mim mesmo e me vendo bem de frente. Célebre, mostro meu sucesso representado pela riqueza de cada ambiente que reflete meu jeito de ser, de viver. Percebo que não é uma loja, é minha casa. Percebo que é uma entrevista. Sento na minha poltrona horrível, mas muito confortável e relaxante, daquelas que seeeee meeexeeeemmm eeee maaassaaageeeiiiaaaaammmm seeeeuuu coooooorpooo. Cafoooooooona. Faço uma brincadeira e chamo a empregada, que ao colocar o nariz para fora da cozinha de um apartamento decorado, me ouve dizer “essa é a Berenice, vou mandá-la de férias para o Pantanal”.

Pra quê!

A preta retinta bate a porta com seu nariz já pra dentro, com tempo de em português apenas dizer “não vou” antes de berrar uma missa, ou melhor, um culto africano em altíssimo volume, claramente chateada e muitíssimo nervosa com a possibilidade de ir ao Pantanal, como se fosse lá terra [ou água?] palco de seus piores e mais íntimo traumas, como as tentativas frustradas de andar de bicicleta no alagadiço quintal de casa ou a prima que não conheceu pois foi mordida por um jacaré e morreu antes que ela mesmo nascesse, mas de malária. A mordida mesmo apenas lhe arrancou um pé, que nem mesmo pode ser substituído por um de galinha, considerando que tinha apenas 6 anos quando partiu dessa para uma pior.

A preta retinha traumas como esses e outros dentro de si, e a minha brincadeira de babaca celebridade rendeu algumas risadas aos espectadores, mas a fez explodir em sons altos e nervoso de primeira qualidade, soava como Simpatia para o Demônio, prazer em conhecê-la. Começou a quebrar copos e taças de sorvete sem nenhuma intenção de parecer acidente, e seu filho pequeno começava a recolher os cacos para fazer cerol quando percebeu que o chão tremia.

As câmeras foram desligadas e voltei minha consciência a mim mesmo. É a segunda noite consecutiva que temos terremotos aqui na nuvem. O chão tremia, e confesso que apesar de não ter matado minha curiosidade de saber como é essa sensação, ao menos me deixou desconfortável. Não consigo ainda, no entanto, conceber qual será a real sensação de uma cidade, um pais inteiro tremer ao mesmo tempo. Tenho dificuldade em entender fenômenos cujas proporções não possam ser vistas a olho nu.

O chão tremeu, um John apareceu, corremos para o espaço mais aberto que havia por perto e deitamos para não cair. Te juro, era como se nunca tivesse posto a bunda pra fora da cafona poltrona massageadora. Tremi, tremi, tremi involuntariamente, tremi de um tanto que nem esperei passar pra levantar, e sem medo de cair, levantei.

Conclusão? Não, não vou tirar férias, não adianta insistir!

E como disse, o que vale são as simbologias, meu amigo.

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Para celebrar o retorno, nada melhor que postar algo relacionado no outro blog também

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