segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

CAMINHO ATÉ ACORDAR

Deve ser sábado, porque não parece domingo e o clima é de clube. Sou metade de um par de amigos que defronte às inúmeras possibilidades de quadras, tenta decidir entre cimento ou saibro. Quando enfim decidimos sujar as meias inteiras de terra, acontece um de meus fenômenos oníricos preferidos, a abstenção de seu próprio corpo – no caso, o meu. Instantes após a decisão, o par de amigos caminha em direção a uma quadra vazia, no entanto nenhum deles sou eu. Fico sentado sobre a mureta de concreto que protege o relógio de água enquanto os vejo se afastar, e assim em algum momento somem – mas não porque foram longe demais, e sim porque se transformam em outra coisa.

Assisto a uma partida pífia de futevôlei entre pai e três filhos, todos acima do peso e com formato similar à imensa bola de piscina que petecam naquela ruidosa e trágica tentativa de se divertir. Penso que além de ocuparem a quadra de tênis com essa demonstração tão menos nobre das capacidades do corpo humano, me desviaram a atenção daquele par de amigos cuja metade era eu mesmo. Levanto imediatamente e caminho em direção à quadra, a mesma para a qual me vi caminhando antes de sumir.

Não obstante minha determinação em me encontrar, toma forma uma enxurrada muito mais determinada e forte que qualquer desejo que houvera antes sentido. O intenso fluxo de água que me impede de prosseguir é também tingido pelo saibro, tomando um aspecto muito mais sujo que gostaria de obter em minhas meias. No entanto, o peso das meias me é irrelevante comparado ao lençol que tento mover. O impulso e a necessidade de carregá-lo são maiores do que gostaria e me impedem de simplesmente largá-lo por ali, impregnado de tanta sujeira que está. Para completar o peso e a força da situação, basta saber que meus passos não levam a lugar outro a não ser onde já estou, apenas para dar-me conta de que a cada tentativa de sair dali, meus pés afundam na lama cada vez mais.

A essa altura, o lençol já está tão sujo e tão pesado que se eu fosse uma máquina de lavar, deveria ligar para a assistência técnica, agendar a visita de um especialista e certamente pagar por um conserto não coberto pela garantia, que todavia já estaria expirada. Não consigo levantá-lo mais que alguns dedos acima da água imunda, e com muito esforço, incapacitado de tentar outra coisa devido ao inexplicável fardo indelével que parece ser esse de carregá-lo comigo aonde for.

Enquanto uma eternidade toma conta de mim, vejo duas adultas com jeito de criança, e suas expressões carregam algo que me dá a certeza de conhecê-las: têm exatamente a mesma idade que já tive um dia, a exata idade que devia ter quando as conheci. A julgar pela sua inocência, são da época que a escola é mais um lugar para passar tempo que aprender e estudar. Entretanto, discutem de maneira pseudo intelectual como duas convidadas em uma vernissage nova-iorquina em um filme de Woody Allen. Dizem algo como “a atratividade dos corpos não se compara à inevitabilidade da atratividade das fatalidades impostas pela trama tecida pela grande tecelã do destino” e outras palavras longas e aparentemente desconexas, mas que deixavam no ar um tom de amarelo muito bom para contrastar com o marrom escuro da água e trazer riqueza nesse ano novo que chega. Fazendo uma análise rápida, esse amarelo também poderia representar a pureza das crianças dizendo “atenção, o que é seu está guardado – para o bem e para o mal”.

Entendo que é hora de agarrar o celular e dizer que obstinado que estou atrás de mim mesmo, é inútil tentar correr atrás de mim se a enxurrada é muito mais forte e insiste em me levar para a esquerda. Antes de dizer adeus, fique apenas claro que não sei para onde vou, apenas que nesse momento devo estar indo para outro lugar. E assim vou para esquerda com a velocidade de uma estrela dando carona ao pequeno príncipe.

Onde chego não é bonito. Não temo dizer que é o lugar mais assustador onde já estive, apesar da coragem inerente ao sonhador ser quase inabalável. Uma favela com jeito de Rio de Janeiro, vocês sabem o que penso disso. Uma favela em guerra e ocupada pelas forças armadas do exército, que nos protege a mim e a outros colegas reféns dessa situação, e talvez de si mesmos.

Assim como sonhos revelam desejos, dão também vazão a nossos principais medos. E claro, um monte de baboseira sem sentido que não é nem uma coisa, nem outra. Mas sinto na ponta do indicador uma impotência que sim, trata-se de um de meus maiores receios: tenho o desejo de avisar meus amigos e famílias que estou neste lugar mas que estou bem, no entanto tento operar um iPad e não consigo entender a interface. Sinto na ponta dos dedos o desespero e impotência de milhões de mães e pais e tias e avós de hoje em dia que tentaram fazer parte de um mundo que se transforma mais rápido que eles, e obtiveram nada mais que o desprezo e impaciência daqueles que sabiam operar e pensavam ter o mundo em suas mãos, seus jovens filhos e sobrinhos e netos arrogantes e hormonalmente desequilibrados, jovens que ainda tardam em aprender que tudo aquilo que já sabem ainda não é nada.

Desisto e sento no chão, próximos a outros como eu. Reféns de nós mesmos.

Mantidos pelo exército em proteção, por vezes não tenho alternativa a não ser andar de um lado para o outro em puro torpor. Não sei se penso em alguma coisa, não sei se planejo ou executo um plano. Sei que escuto o tempo passar enquanto a guerra lá fora parece feia, apesar de muito mais quieta que essa ensurdecedora ausência de pensamentos.

Uma barraquinha de frituras não é guardada por ninguém. Tenho fome e pego de um saco o pedaço de pão que reparto com alguém que me olha. Sem pagar nada por isso, sou observado sem entender o significado dos olhares, se é que há algum. Começo a pensar sob um dos olhares mais intensos que já me teve como alvo. Não consigo decidir se me repreende, e caso sim, por quê. A essa altura, já penso que o pão é um símbolo não do pecado, mas do livre arbítrio. Ninguém bateu na minha mão, ninguém quis saber de nada. Talvez a barraquinha fosse uma gentil oferta e tentação provida pelo exército como um estímulo à ação. Talvez aquele olhar apenas me repreenda pelo fato de ainda estar aqui e não em outro lugar.

Percebo que começo a reconhecer algumas construções que se movem mais rápido do que meu olhar. O chão sobre o qual estou sentado é de um ônibus, e a meu lado seguem alguns dos outros reféns, todos calados. Parecem saber melhor o que está acontecendo, ou apenas estão mais conformados com a situação. Grito uma pergunta, “ONDE ESTAMOS?”, e uma voz me responde “no centro”. E o centro é o exato lugar onde não se pode ir mais para dentro. Do centro, para qualquer direção que aponte ou caminhe, o destino é sempre para fora, e fora tem a inevitabilidade da atratividade.

Caminho em direção à dianteira do ônibus e falo com um sotaque que não é meu, digo ao motorista que “preciso baixar o mais depressa possível”. A freada não é brusca, apesar da proximidade do ponto em que paramos. Desço pela porta da frente mesmo, feliz por fugir daquela guerra, e ao olhar para a direita vejo baixar do mesmo ônibus mais um monte de gente como eu, exceto aquelas que pareciam conformadas demais e que deram a mim seus mais vazios, no entanto mais expressivos olhares.

Assim como o sotaque não era meu, o gesto que aceno para os demais não o é. Um misto de paz e amor com o V da vitória ou da vingança que se vê muito em fotos de gente cuja outra mão segura um copo de energético. Eles me sorriem de volta, e entendo que falei sua língua. Vão todos em uma direção não oposta, mas diferente da minha. Apenas uma mulher que deve ter aproximadamente a mesma idade que eu caminha junto a mim. Sorrio e digo “parabéns”. Ela sorri, diz o mesmo e me convida para visitar o museu da lingerie. “Chega de glamour”, ela diz, e completa com “está mais para um memorial da roupa de baixo, então vamos logo para outro lugar”.

Sorrio outra vez e sem dizer mais nada, caminhamos. Ela tem quase a minha altura, cabelos castanhos e sorriso charmoso. Percebi que às vezes ela erra e sorri para baixo, mas acho que sou eu que entendo menos de sorriso que ela. Afinal o lance do sorriso é o que faz você sorrir, e não o quanto mostra dos dentes. Caminhamos sem falar até acordar. Era esse o outro lugar.

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