quarta-feira, 26 de outubro de 2011

PEÇA À TERCEIRA PESSOA – UM MONÓLOGO EXTRAPSICOLÓGICO

[Uma pesada cortina de veludo alemão vermelho guarda o palco dos olhares do público. O clima de ansiedade e animosidade é necessário, e garantido por atrasos sistematicamente maiores a cada apresentação, até que se descubra a progressão utilizada, quando então deve-se pensar em outra forma de irritar a plateia. Ouvimos os passos secos de uma bota francesa de cromo alemão e sola de madeira, que cessam ao atingir a precisa metade do palco. Um spot de luz frontal acende ruidosamente sobre o orador, que reage abrupta, mas comedidamente até se adaptar à luz nos olhos e começar a falar na boca de cena, entre a cortina e o precipício que separa o ator da nervosa audiência.]

- Alunos e alunas aplicados/as sempre às exatas, até mesmo às biológicas, mas nunca às humanas. Isso tudo pode ser chamado démodé ou outro termo na nova escola, mas a história é da velha e os termos são esses. A velha, conhecida obsessão matemática aplicada à gramática.

O orador caminha pela boca de cena.

- Assim como menos com menos dá mais, mais com mais dá mais; apenas menos com mais – ou vice-versa – dá menos. Portanto, depois de aplicada essa micropílula de sabedoria popular, a pergunta de um milhão de dólares seria [Antes de selar o acordo, diga – é capaz de honrá-lo? Bem, meu rapaz, para sua sorte ou azar, não importa, pois não há tempo para a resposta!], retomando, a pergunta de um milhão de dólares seria: como não existem no mundo mais números positivos que negativos? Extende-se ao infinito e além, até onde ecoar, a questão.

O final dessa frase ecoa e reverbera gravemente. Uma lousa desce do teto pendurada por cordas.

- Ao passo que chegamos em três parágrafos ao cerne da questão, fato que não deve ser outra coisa que não coincidência, algo assim para apenas afirmar pela negação do contrário*. Não obstante, se não vamos aqui deixar à deriva os números, que a tese surja de acordo com o titulo. Pois bem, lá vai ou lá vem: a terceira pessoa do singular está sempre no extremo oposto do espectro de onda referente aos pronomes relativos quando comparada à terceira pessoa do plural; para cima ou para baixo e qual, isso depende de onde se firma o tripé do observador, variando ele e eles como inclusivos ou exclusivos, invariavelmente, e de certa forma até concomitante e inevitavelmente, incluindo nessa oposição a valência de cada um dos termos.

A seguinte frase é escrita pelo orador no quadro: 7r35 3’ m35m0 um núm3r0 m4’g1c0, s3 3ss3 73rm0 pod3 d3 f4t0 3x1571r.

[*Ideia para outra estória: um jovem rebelde, adolescente filho de pais bastante inteligentes, que decide se tatuar às escondidas pelo simples prazer do perigo, uma vez que seus pais são também bastante liberais, e escolhe um dizer bastante categórico e vermelho para pintar de preto a pele com “eu não me afirmo pela negação do contrário”. A trama se desenrola na frustração do pai ao não conseguir nenhuma de duas coisas: 1) compreender a razão do ocorrido; e 2) fazer com que o filho compreenda onde está a verdadeira inaceitabilidade do evento. Rever O Bebê de Rosemary. A criança pode se chamar Edgard, pô!]

- Sábio ou apenas paciente você que até aqui chegou, saiba que a primeira fase deste vestibular já passou, e servia apenas para despistar os caça-tesouros, descartar os idiotas e filtrar os verdadeiramente dignos. Se chegou até aqui, parabéns! Um Zé-Ninguém lhe confere o titulo de Doutor de Absolutamente Porra Nenhuma. Em reconhecimento ao empenho empregado, a verdadeira estória a seguir.

[O foco de luz se apaga ainda com o orador em riste, que veste regata preta cotelê corte italiano, boné trucker, um relógio de bolso dourado, calça jeans rasgada e a bota. Óculos de hastes douradas penduram-se sobre o nariz, equilibrando-se. Abrem-se as pesadas cortinas vermelhas de veludo alemão. Aura de Lynch no clube. Silêncio. Não há banda. Início Primeiro Ato.]

O orador se movimenta para trás. Cenário simples, minimalista, tábuas corridas e um banquinho de madeira rosa com três pés no exato centro do palco. Magicamente, se veste de outra maneira: calça branca feminina de cintura baixa, camisa xadrez em tons predominantes de verde e um velho All Star cheio de potencial explorado, cor de vinho seco, um Malbec bem específico. O spot não vem mais de frente, só que de cima, fazendo o orador praticamente não ser mais ele mesmo, mas seu próprio nariz. Sua barba cresceu. Acima do banquinho há um conjunto de cordas grossas de sisal, perfeitamente imóveis e perfiladas paralelamente à boca de cena, na mesma profundidade do baquinho. O orador não senta, mas se empoleira sobre ele, equilibrando-se com apenas um dos pés, o esquerdo. “Vai, Carlos! ser gauche na vida”.

- Meu caro espectador, o ingresso é caro, mas nem por isso vou deixar de cobrar de você. Afinal, foi você quem escolheu estar aqui; caso não seja seu caso, tanto pior e ainda mais se foi você quem pagou. Mas a vida de artista não é fácil, mesmo sem ser você há de convir se apenas um pouco pensar. É fácil não ter o que fazer? É fácil buscar uma voz para se expressar, mesmo que não saia de você e no entanto represente tudo que você lá dentro diz a si mesmo sem conseguir escutar, só sentir? Você entrou aqui trazido por suas próprias pernas, o que cria a chamada demanda nas suas regras de oferta e preço, portanto agora quem está no controle sou eu. Como em combates aéreos clássicos da Primeira Grande Guerra, pilotei meu avião até mais alto acima de você, eu sob ataque, até que enquanto me mantinha ainda firme em subida, você se curvou e cedeu. Nesse momento eu inverti o loop, e agora seu motor está desligado e você, em queda livre. Meu caro espectador, o ingresso é caro mas vou exigir de você. Saia da zona de conforto onde toda sua falta de atitude é muito bem justificada pelos gastos em dinheiro. Você compra o mundo para não fazer nada? Pois bem, tranquem as portas! Só sairão daqui depois de pensar e refletir muito!

O orador salta suavemente enquanto termina a frase, agarra precisa e firmemente uma das cordas e aterrissa no chão com o pé esquerdo. Luzes brancas e fortes acendem ruidosamente contra a plateia, ao mesmo tempo que uma cortina de veludo cotelê no fundo do palco despenca até o solo, revelando por trás de si um gigantesco espelho de moldura rococó. O espelho reflete absolutamente todas as pessoas, de todos os ângulos. O barulho das portas ao fundo da plateia sendo trancadas beira o claustrofóbico.

- Meu caro espectador, o ingresso é caro, então peço-lhe que confie no que vou lhe confiar em segredo, sob pena de, em se deixando de ser segredo, transformar-se em traição. Primeiro de tudo, que tal a sensação da luz forte lhe cegando os olhos inadvertidamente? Quando foi comigo ele se divertiu!

Orador aponta para um tipo na plateia e pergunta, olhando o tipo nos olhos enquanto aponta para outras pessoas e passeia pelo corredor de acesso às poltronas:

- E eles, riram de mim? E agora, vai dedurá-los, retratar-se comigo ou juntar-se a eles? Meu caro espectador, o ingresso é caro, e a pergunta é retórica. A porta está trancada e você não pode evitar de refletir. E todos podem ver o que reflete. Assim, vestidos e refletidos, ternos e vestidos são tanto quanto nada. Estão todos nus perante os demais, despidos, desprovidos de proteção, enquanto o único vestido sou eu!

Em um gesto seco, rápido e preciso como uma navalha, puxa sua roupa violentamente para frente. Ela cai, o orador está nu.

- Meu caro espectador, o ingresso é caro, mas você não veio aqui para menos do que vou impor. Exijo sua abstração, exijo total soltura das suas funções psicológicas, exijo que se entregue. Exijo atenção. Ouça com atenção em vez de apenas escutar. Em vez de ficar só olhando, me veja. Solte a direção de arte da história cujo roteiro sou eu quem vai contar. Meu espectador ilustre, não precisa criar, ilustre. Eu exijo sua abstração. Não tem cenário que não possa existir, simplesmente porque aqui não há nenhum. Aprendam a se sentir confortáveis com toda essa exposição, eu lhes garanto, se todos podem se olhar, ninguém vai lembrar que se viu.

As luzes diminuem. O orador retorna ao palco e puxa outra corda. Jatos de água caem do alto formando palavras:

VOCÊ ESTÁ
PRESTANDO
ATENÇÃO?

A hidrotecnia dura cerca de 13 segundos, tempo suficiente para o orador se vestir com uma calça preta de zíper prata e malha-de-lã teia-de-aranha cor-de-abelha. Caminha descalço com um par de coturnos pretos nas mãos em direção ao banquinho, sobre o qual senta. Tira de dentro do coturno esquerdo um pé de meia preta e começa a vestir no pé esquerdo lentamente, olhando para o nada, como que refletindo sobre as próximas palavras. Pega a meia direita, faz que não com a cabeça, larga a meia e calça o coturno esquerdo enquanto começa a falar:

- Caro espectador, o ingresso é caro, e por isso exijo sua abstração. Agentes secretos se infiltram na vida de uma mulher. São dois. Um deles já está infiltrado dentro da vida do outro, ou seja, dois níveis pra quem sabe da Origem. O primeiro agente se infiltra como agente mesmo na vida do segundo. Ambos se infiltram na vida da mulher: o mais belo como faxineiro do prédio, o mais rico como pretendente.

A essa altura, o orador deixa de lado o pé direito do coturno e põe-se a manquitolar de um lado para o outro do palco rápida e freneticamente.

- O pretendente e a mulher estão em um encontro na casa dela quando aparece, tarde da noite, o bonitão da limpeza. O que ambos querem? Acima disso, quem são eles? Quem é ela? Quem são eles pra ela? Quem está encenando?Já pedi antes que confiassem em mim, e afinal não têm escolha. Vou precisar que se mantenham calmos, quietos e extremamente concentrados em 3, 2, 1...

[Todas as luzes se apagam, novamente com ruído. Passam 3 minutos assim, até que o spot vertical se acenda novamente sobre o banquinho. Agora o orador está sentado com a cabeça apoiada sobre o punho, mimeticamente análogo ao famoso pensador de bronze. Calça apenas o coturno direito, sem calça ou nada mais. Cabelo e barba raspados bem rente. Início Segundo Ato.]

A voz do orador soa, mas sua cabeça e maxilar estão imóveis.

- A soma das unidades desse parágrafo é 13, não perca seu tempo contando, já adianto que não adianta. Prostitutas invadem um veículo e obrigam a dirigir em direção a uma tal mansão. Quando um semáforo fecha, uma necessidade incontrolável de estacionar. Uma irmã surge e conduz sorridente para dentro de uma casa imensa, um loft gigante que poderia ser uma fábrica de automóveis. Primeiro uma pergunta sobre um piso de tábuas corridas bem lindas e longas, que é belo e caro. Depois ao videogame ultrarrealista com um jogo de boxe controlado por sensores de movimento. Ao primeiro soco recebido, prazer. Ao primeiro proferido e acertado, um buraco no estômago. Está tudo bem? Não! Corram daqui, busquem aqueles que se importam, busquem aqueles com quem se importam, vão, busquem o seu amor, já é hora. Vão, ou será tarde demais e será tudo em vão, vão logo antes que as oportunidades se fechem e não sobre um vão, vão! Peçam à terceira pessoa para quem contarem que venham até aqui. Peçam à terceira pessoa que vejam essa peça!

Surge magicamente um Kadet Turim automático 1990 sobre o palco, em cujo banco do motorista o orador já se encontra. A frente do carro está voltada para a esquerda do palco. O orador encerra:

- 1990, e ainda ele ainda está fazendo um grande trabalho!

Pisa fundo no acelerador, mas o câmbio está no N, de forma que só aumenta o ronco do motor. Uma câmera bem sobre o câmbio capta a imagem da alavanca, que é projetada sobre uma tela que ocupa o lugar onde ficava o gigantesco espelho de antes.

- São de 1990, e eles já estão fazendo um grande trabalho.

Na projeção, percebe-se a mão do orador puxando a alavanca até o D. Ele faz um sinal da cruz todo errado e ora:

- Affe, Maria, chega de graça. O senhor é tão lindo! Meu caro espectador, o ingresso é caro e você já perdeu tempo demais!

Nisso, acelera com força, os pneus cantam e o automóvel se move velozmente para a coxia, deixando para trás um rastro de fumaça. Em 13 segundos, ouve-se um violento barulho de acidente, todas as luzes se acendem, as portas do fundo são abertas e o orador está no saguão para receber os cumprimentos.

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segunda-feira, 24 de outubro de 2011

MAIS NUNCA É O SUFICIENTE

Agentes do governo surgem do lado de fora. Os ouriços no dos muros não resistirão mais que alguns instantes, pois alguns cobertores de mendigo dão, facilmente, conta do recado.

O altofalante na parede, assim como o terceiro monitor ao seu lado, não tem botão I/O. Uma coisa bem Orwell, e começa a funcionar. Vinte e sete anos se passaram, de forma que não se contesta mais a qualidade da imagem e do áudio, mas em tese nem o conteúdo do que se vê ou ouve, e isso persiste desde aquele então de um futuro previsto e que já é passado há tempos.

Mas assim como o futuro daquele passado cedia espaço a insurgentes, este presente o faz com mais armas e mais premonição. O segundo monitor é onde a mágica acontece, mas no primeiro é onde reside toda a fidelidade do que se vê, e de onde sai o som daquilo que se precisa ouvir. Máquinas enormes dão lugar a imensos emaranhados de fio para carregar nossas internets móveis.

A capa de um documento no monitor 1 anuncia em graves letras serifadas a troca de um ministro na área rural. A vista da janela denota que não há mais muito tempo para resistir. Além disso, denota que estamos na área rural, logo chances há de que seja aqui o alvo da queda.

Cercas de arame lutam contra fibras, luvas e borrachas, resistindo bravamente à investida por quanto tempo conseguem, considerando que há muito vivem de sol, capim e da chuva que cai quando as pessoas sensíveis do andar de cima decidem lembrar suas razões de ser.

O presidente desce as escadas, e se desse a menor pinta de que soubesse o que fazer, seguiríamos suas ordens. No entanto, a pinta que pinta é daquelas que até mesmo um açougueiro classificaria como alvo a ser eliminado. Bem, cirurgia é a única saída. Uma lenta investida com os dentes de uma serra tico-tico cega dão conta do procedimento. Salvamos a pinta, e nos livramos do mal que esse presidente representava como ameaça à sua existência.

A vantagem de dar uma boa pinta é que sempre impressiona. Nesse caso, bastava lançar mão dela para que dissessem “bem, este sujeito está com pinta de presidente” – o que seria sempre verdade.

Mas como isso pode ajudar no plano? Aliás, que plano?

Primeiro, como toda boa estratégia, é preciso mapear o terreno. Só depois definir os objetivos, e então as metas, táticas e medidas de sucesso.

1] O terreno é retangular, sem grandes aclives ou declives. Quem fica na parte baixa tem a vantagem da proximidade em relação à porta de entrada e saída, e trabalha com o pouco acidentado relevo ainda assim a seu favor. Correntes delimitam a área de atuação. É impossível determinar se falamos de uma fazenda ou de uma rua – o pavimento ao redor não parece levar a muito longe, e o gramado está mais para capim. O concreto das hastes não racha, mas elas em si rangem.

2] O objetivo é chegar na cúpula do abat-jour que acende com um simples toque de pele, antes que o abat-jour automático se acenda, para então forçar uma reunião às cegas.

3] A meta é encontrar as pintas simétricas que marcam o lugar certo, bem entre elas – nem mais para lá, nem para cá. Para isso, precisamos de tempo porque afinal, mais nunca é o suficiente.

4] Toda a tática se baseia no uso de um relógio suísso sem corda e atrasado. Demos a nós e ao tempo o benefício da dúvida, e a chance de estarmos errados mais que certos. Isso vai gerar bastante confusão.

5] Sucesso seria receber a medalha invisível de honra ao mérito pelas mãos grandes da dura, macia, enorme e rude justiça.

É chegada a hora. A rádio-chamada é feita sem aviso prévio. Um último olhar pela janela antes de calçar o coturno e encaixar a mochila nas costas. Ao sentir seu peso, no entanto, fica evidente que só é possível andar com ela para trás, o que leva à inegável lógica que vestindo-a na pose marsupial há mais chances de evoluir. Nessa última olhada, percebo que o teto do campo de batalha é mais uma vez vagabundo, feito do mais vagabundo plástico de cortina de chuveiro. Tanto pior para mim, que não me contento com menos que um box decente e espaçoso.

Feito.

O peso de duas vidas na região abdominal é o que faz do canguru o que é. Essa sensação não passa despercebida. É pesadamente suportável, na tênue linha que divide a capacidade da mera e simples desistência. Me sinto gravemente grávido. A forte chuva que cai sobre nossas cabeças denota minha razão ao ter desconfiado e renegado a capacidade da cobertura.

Após uma breve discussão que parece inútil, pois os convivas podem sem piedade ser sentenciados menos inteligentes que o necessário, dar as costas é tarefa fácil perto do esforço que era dar ouvidos.

Já distantes cerca de 13 passos, esses ouvidos escutam uma última reclamação sobre a falta inadmissível e substancial de um redator. O dedo indicador H aponta para o céu, e o G aponta para a cabeça, de cima para baixo. A chuva cai incessante, porque novamente, mais nunca é o suficiente.

Martelo com a mão o relógio de metal a fim de encaixar os elos da pulseira antes de botá-lo para funcionar.

Ao chegar na fachada do velho edifício novo, um toldo se projeta bastante nova-iorquino, e o rapaz na porta é cortês como não haveria de ser para todos, estende uma mão dura, macia, enorme e rude. Seu pin de identificação diz Lauro.

Muito simpático, ou talvez apenas com empatia natural, sugere que suba. Diz que as vantagens de morar nesse edifício vão além do nome de outrora, mas passam por cuidados que podem ser deixados de lado sem deixar a vida passar em vão. Nesse lugar a vantagem é que aquilo que se realmente deseja lhe vai aguardar, mesmo que à primeira vista não agrade – o que, segundo Lauro, não é o que vai acontecer.

- Assine aqui – insiste.

- Para quê?

- Sua medalha de honra ao mérito. Ela é dada a quem faz por merecer.

Por hoje é apenas uma, mas lustre-a todos os dias e será eterna, como um bom mérito deve ser. Afinal, mais nunca é o suficiente.

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domingo, 23 de outubro de 2011

DE CABEÇA NA METAMORFOSE

Uma banheira. Um cobertor. Uma penteadeira. Um vidro de lustrapatas. Um livro contábil. Um par de sandálias. Uma canga. Um binóculo. Duas torneiras de bronze.

Um singelo pássaro a observar.

Acordo como se fosse uma vítima do sádico sanguinolento que fala por intermédio de um terrível boneco ventríloquo e um gravador, mas sem a parte do “olá, quero jogar um jogo”. Mas pelo nome do filme, faz muito sentido tentar organizar as peças desse quebra-cabeças. A trilha perfeita toca no ar, jamais deixaria passarem despercebidos Mick e os slides de Keith. Mas cansei de esperar pacientemente.

A banheira fica no canto de um banheiro claro e limpo, e poderia ser aquela descartada na reforma, se não fosse outra. Apesar de que olhando por dentro, são bem parecidas. No entanto, pelos perfeitos alinhamentos horizontal e vertical em relação ao lustre no teto, percebo que não está no canto, mas no centro. Pela mobilidade, deve se tratar de uma banheira vitoriana.

Até agora só olhei para as coisas e o pássaro, sem olhar para mim. Preciso encontrar meu binóculo. É incrível como nos sonhos a realidade pode ou não se repetir a seu bel prazer; nesse caso se repetiu, foi como quando procuramos a chave que seguramos com as próprias mãos – o binóculos estava já em frente aos meus olhos durante todo o tempo.

Desviei das lentes e me dei conta que tudo parecia como o mundo 4. Maldição, estive olhando pelas lentes do binóculo ao contrário, e em vez de ver as coisas maiores e mais próximas, as via menores e mais distantes. A banheira era imensa, assim como todo o resto. Até o pássaro, apesar de não ser monstruoso, parecia agora bem maior que esperaria. Parece do meu tamanho!

Começo a andar buscando sair da banheira. Assim que começo a subir, começo a descer. Começo a subir, começo a descer. “Maldição”, penso, “esse é um daqueles sonhos de impotência”. A sensação de escorregar pelas lisas paredes da banheira não é ruim. No entanto, depois de umas treze tentativas perde a graça.

“O vidro de lustrapatas”, exclamo. Mas é claro, quem quer que tenha me jogado nesse mundo gigante, deve ter lustrado minhas patas enquanto dormia, evitando assim que saísse.

A passarinha mia e se lambe do alto, empoleirada na borda da banheira. Ela mia perguntando se não teria eu me dado conta de que se tenho patas, humano não sou. Ela diz ainda que nos parecemos mais do que posso imaginar. Seria eu como ela? Seria ela como eu? Espelho, espelho meu...

- Levante os braços.

- Você está armada?

- Vamos lá, pareço estar?

- Não, mas gostaria de ouvir de você.

- Levante e digo o que quiser ouvir.

Levantei os braços que eram asas, bati e voei para fora da banheira aliviado. Sem dizer palavra, nos direcionamos cada um para umas das torneiras de bronze reluzentes, agarramos suas antigas e belas hastes com as patas lustradas, fizemos força e dançamos tão graciosos como pássaros devem parecer.

Tudo nesses momentos é mais rápido e menos racional e menos psicológico, por uma de duas razões, ou um mix de ambas. Pode ser porque animais sabem instintivamente o que devem fazer, ou apenas porque tinha que ser. Não sei o que pensar, só o que dizer - ou vice-versa?

As torneiras começam a encher de água o banheiro, e por isso a banheira estava deslocada. Estivesse no canto, todo o líquido cairia em seu interior, e posteriormente pelo ralo, visto que não tenho uma tampa. E por isso a banheira não era a da reforma, senão seria fixa. O universo faz sentido, afinal!

O livro contábil é o primeiro a se encharcar. A sensação é boa, quem quer saber de conta é gente, e hoje somos pássaros livres para voar. A contabilidade é assunto para outro andar de outro prédio, ares rarefeitos que não quero respirar. Não quero ossos pneumáticos para me preocupar com esse tipo de pequenice.

Voamos para a penteadeira para dar um último tapa no visual. Somos bem parecidos. Pelo tom de vermelho, somos dois Tiê-sangue. Isso, Watson, pode nos levar a mais uma inferência, a de que estamos na costa sul do litoral norte, se considerar o piso de madeira e o silêncio faz ainda mais sentido.

Pegamos com as patas e despejamos dentro da banheira as sandálias e a canga. Enrolamos rapidamente o cobertor nas patas também de bronze da banheira, evitando que seu deslizar risque o piso. A água já está a ponto de nos fazer mover.

Assim que a banheira se transforma na embarcação rumo ao ansiado desconhecido, empoleiramos na sua borda e descemos escadas e corredeiras sem muito esforço, uma vez que a água é tranquila tanto quanto límpida.

Após não muito, chegamos à entrada de onde se serve o melhor Filet au Poivre pé na areia de que se tem notícia, saltamos voando para a grande grade de madeira em sua varanda. Peça que o interior seja vermelho como nossos peitos e a satisfação é garantida.

Mas ainda não é hora de regozijar, vamos até o fim. Seguindo o fluxo da água, nossas patas se transformam em pés e vamos crescendo à medida que a fórmula areia + água nos atinge. As penas não caem, mas desaparecem, e me vejo quase humano novamente. Ando uma rua até que toda a metamorfose esteja completa, desembocando em um píer desgastado na medida certa, dando acesso a uma praia completamente vazia, onde só descansam o sol, a areia, as ondas, uma canga e um par de sandálias.

Tenho pela primeira vez a real sensação de que um desagradável aniversário está chegando. Aniversários são a maldição da existência. Todo mundo faz. Todo mundo. Todo ano. Todo mundo que eu conheço faz. As únicas pessoas que conheço que pararam de fazer aniversário, estão mortas. Então para quê os parabéns? Acho que preferia um dia depois, o que me incomoda é o fato de passar o ano todo nessa expectativa.

Afinal, jamais pude dizer “bem, quanto a isso tô tranquilo, pelo menos aniversário esse ano eu já fiz”. Não, eu sempre tenho que deixar tudo para a última hora.

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sábado, 22 de outubro de 2011

CARTA PARA JULIÈTTE

CURIOSO

Oi.

Em mais uma dessas minhas frequentes idas à Argentina resolvi caminhar do Aeroparque até o hotel. Pé ante pé nas calçadas, me dei conta de que havia algo de diferente no ar. E quando na capital federal, é de se esperar que sejam bons ares. Ahn?! ;)

Comecei a perceber quando em uma curva comecei a descer. Você já esteve lá, parece a curva à direita de quem desce a Brigadeiro e vai para a Vinte e Três, bem ali embaixo da varanda do Lions Club, saca? Então, é íngreme, e essa cidade deveria ser plana, não? E além disso, Luiz Antônio tem alguma relevância para esse povo? Creio que não. Curioso...

Percebi que o mesmo tipo de corrente do centro de São Paulo afunilava a calçada, de maneira que pé ante pé virou gente ante gente, e não havia como ultrapassar. Como sempre, tentei chegar um dia antes para não me importar com esse tipo de problema. Para deixar o tempo passar, resolvi então entrar no restaurante onde como sempre.

Mas antes de entrar ainda haviam alguns metros ao longo dos quais mais coisas curiosas decidiram acontecer.

ESTOU MUITO CURIOSO

Acho que você, aqui, também estaria. Pela rua não passavam carros, mas uma infinidade de bicicletas velozes e reluzentes. Todos olhavam para os ciclistas e os aplaudiam. Percebi que o aperto da calçada era para evitar que uma pessoa ficasse na frente da outra, impedindo a visão a que todos devem ter direito. É tão bonito vê-los passar, e se não fosse a Tour de France que estavivesse acontecendo, teria certeza de que era o grupo de corrida que vejo pela varanda passar todos os domingos a quatro andares de distância.

É uma verdadeira festa, preciso admitir. Gostei de fazer parte, mas estou muito curioso com qual fato político teria feito com que a Tour de France se mudasse para essa Buenos Aires travestida de São Paulo. Seria isso fruto da já não tão falada Globalização, ou Mundialização – termo mais humano preferido pelos franceses – latinos – em oposição aos mais técnicos saxônicos / anglicanos? Ou será que ela é apenas mais longa que imaginei e passou sempre por aqui? O que acha?

Assim que todos os participantes passaram, voltei o olhar para a direita, que era a direção do restaurante para onde ia. Avistei carregadores de piano carregando um piano velho e lindo, celestial. As marcas de uso em instrumentos musicais são como mãos e cantos de olhos envelhecidos – alguns vêem como padrão de depreciação, enquanto outros [grupo do qual faço parte] consideram aquilo a beleza, a história de cada instrumento que deixou de ser um pedaço de madeira para ser uma alma. As marcas são a materialização do potencial, afinal um piano não é nada. Um piano é a música que sai dele. O que acha?

Os carregadores do piano parecem músicos experientes, dado o cuidado realmente de enfermeiros que têm com o instrumento. Uma mulher que emana azul é a próxima da fila na calçada. Quando chegaram os três à porta do restaurante, o piano foi colocado no chão. Eu, que distava ainda umas 15 pessoas, não me irritei como elas. Creio que tivessem hora para chegar, enquanto eu apenas vagava.

A mulher que emanava azul colocou seus dedos de anéis sobre as teclas pretas, e tocou uma melodia linda e melancólica quase que praticamente toda sobre sustenidos e bemóis. Reconheci a canção, e talvez você um dia a reconheça se ouvir pela segunda vez ou décima terceira. Não é famosa ainda, nem nunca será. Enquanto tocava, as pessoas na minha frente deixaram baixar a guarda e pararam de buzinar para aproveitar o momento peculiar e doce.

Assim que terminou, a mulher entrou no restaurante. As quinze pessoas andaram até que eu pudesse alcançar a maçaneta e entrar também. A mulher era você, e o restaurante era um brechó. Você não pareceu me reconhecer, no entanto não me ignorou, pelo contrário. Me ofereceu com um gesto o sofá de madeira escura e veludo vermelho defronte ao provador. Era um brechó de muito bom gosto, de muito estilo, uma versão melhorada do À La Garçonne, tão melhorada quanto um cartão de crédito normal que da noite para o dia adquire um novo limite de um bilhão e sessenta milhões de Reais. Ou de Euros, falando em França. Nunca de pesos, apesar da Argentina.

Desfilou por entre as araras, perguntou “que roupa eu ponho”, escolheu algumas peças, se encaminhou ao provador com cortina de veludo alemão combinando com o sofá, afastou de um lado apenas o suficiente para entrar, virou-se para mim, piscou com cílios de boneca de pano, fechou e de dentro disse “se ficar aí sentado, adeus; caso contrário, nos vemos”.

SOU MUITO CURIOSO

Você sabe muito bem disso. Que boa charada! Mesmo antes de decifrar, já sei que adeus não me apraz, portanto levanto e retomo em direção ao hotel. Sou muito curioso para não pensar nisso durante todo o caminho, o que faz o percurso parecer muito mais curto do que na realidade de um sonho seria.

O hotel era pequeno e elegante, tinha um quê de flat. Na extensão do lobby, um piano bar. Quem estava lá? Quem? Sim, ele, o piano velho. Uma dona Josefina escrevia em um envelope e fincou a caneta tinteiro na madeira do velho piano com realmente mais força do que aqueles velhos braços pareciam ter. Uma dona Lydia riu desgraçadamente como se o som viesse do além. Fiz uma digressão rápida ao perceber o estado esburacado do piano. Diferente das costas de uma guitarra com forma de cintura de mulher, em cujo verso a fivela de caveira do cinto esfrega com vigor, desgastando a pintura de uma maneira sexy e definitiva, esse piano parece maltratado pelas razões erradas. Ele está assim pela quantidade de cheques e guias de cartões que devem ter sido assinadas naquele lugar, e até mesmo as comandas dos hóspedes solitários que passaram noites ali a se embriagar. Pobre piano, suas marcas de tempo não denotam um potencial atingido, mas o contrário.

Sou muito curioso e decidi perguntar a ele próprio, o piano, como se sentia em relação a isso. Ele me respondeu que apenas uma vez fora tocado bela mas brevemente, então não tinha certeza se foi feito mesmo para isso, ou se havia cumprido um bom papel como alvo da ira de canetas descontroladas e autoritárias, pois estas regem as transações monetárias que mantêm tudo ali funcionando. Me entristeci e olhei para ele com muito pesar. Disse que esse fardo é pesado, muito mais pesado que ele, mesmo apesar de um piano não ser leve. Mas seu potencial é leve e puro e pleno e belo. Pedi que não desistisse, que um piano não é um piano, mas seu potencial. Ele com o olhar consentiu, mas disse que esse fardo era dele, que não me preocupasse e subisse direto ao meu quarto. O que acha?

Subi apenas um lance de escada e logo abri a porta, e o fato daqui por diante você já sabe, mas não como eu vi. Todo o chão do meu quarto era coberto por uma grama verde recém aparada. O céu era azul e cinza, e emanava um tom de bronze celestial. Você falava ao telefone e sorriu ao me ver, fez um gesto com a mão e apontou o balcão da cozinha. Havia nele um papel e uma caneta fincada. Fui em direção a ele e percebi que era o piano. Sentei e reproduzi nas teclas pretas a melodia de antes. Fiquei feliz ao pensar que havia desvendado toda a charada, mas quando me virei, você não estava mais lá, só a grama e o cheiro no ar. Não era mal, no entanto.

Resolvi então olhar no papel, havia algo escrito com a minha letra. Uma conjugação do verbo ligar no tempo presente, acrescido de uns detalhes.

Quem liga?
Eu ligo
Tu ligas
Ele liga
Nós ligamos
Vós ligais
Eles ligam
Quem não liga?

Eu sou muito curioso demais para não me concentrar na resolução dessa charada, mas acabei acordando. O que acha?

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quinta-feira, 20 de outubro de 2011

PSICOLOGIA REVERSA


É essencial ter os pés firmemente plantados no chão para nos podermos lançar no espaço - Miró


Não acontecera nada, absolutamente nada acontecera antes disso. E por essa razão, me sentira impossibilitado de fazer outra coisa que não fosse montar aquela moto e disparar a toda velocidade por onde desse, subir por onde se desce e irromper pelo ar com uma inércia noir.

Não obstante, o desejo não passava de sonho completamente imaterial. Aliás, sonhos e almejares [existe?] muito materiais são pouco significativos, prefiro o que é mais subjetivo e, portanto, fornece mais material.

Dando sequência, não havia mais que no desejo a tão sonhada fluência. De fato montava a moto como se monta um cavalo; mas o bicho era chucro e teimoso, e teimava com a direita, o tinhoso. Cada vez que a montava, tombava. Nem marcha conseguia engatar. O pé esquerdo enganchava na haste, enquanto o direito com muita força nos mantinha em pé. Ia afrouxando os dedos da mão esquerda, torcendo para trás o punho direito, torcendo que para frente nós fôssemos – e direito.

Assim que começava a mover, tentando trocar de inércia [do repouso para o movimento], algo muito mais forte que eu torcia o guidão para a direita, torcendo para que eu caísse. E dava certo, caí muitas vezes.

Em algumas outras, consegui até andar por algum tempo. Não consegui desenvolver grandes velocidades, nem sentir uma ventania intensa no rosto, mas cheguei a andar uma avenida. De qualquer modo, o final era sempre o mesmo, uma inevitável queda para a direita. Sustenido para quem vai.

Isso deve se repetir por umas 13 vezes, isso mesmo, cincomaisoito, treze. Três mais um, quatro. Quatro = número de rodas de um automóvel, que não cai assim, do nada. Como já diria um José, “não tem como dar certo – uma coisa que não é capaz de parar em pé sozinha, uma hora cai”. Sábias palavras, e olha que já citei gente que se mantém sábia através dos séculos...

Bom, trêsmaisum, quatro. Ótima deixa para trocar a motocicleta por um carro, já que motivos as quedas já eram desde a primeira. É um bom carro, esse meu. Além de quatro rodas, é quatro por quatro. Alto e não muito grande e com boas alças para carregar nas costas.

Saio dirigindo por aqui, por ali, chego acolá.

As quedas de moto são coisa do passado. Estou de pé no alto de uma inclinada e pedregosa descida. Tem uma queda d’água ao longe. Encaixo a mochila-carro nos ombros e é tão confortável, tão surpreendentemente leve e anatômica. Começo a descer a parte menos inclinada passo a passo em ritmo de caminhada acelerada.

Me acompanha de repente uma alongada mulher. Tem rosto e voz familiares, e jeito de moça de família. A conversa não se alonga muito antes de me desafiar. A observo bem nos olhos e reparo nos cílios alongados a rímel e curvex, bonitos na exata medida antes de se tornar algo de Emília de Monteiro Lobato. São o limiar, beleza limítrofe. E olha que esses olhos nem vêm ao caso, olha que esses olhos nem vêem o acaso.

Os olhos que me fixam, mas de entre dentes soa o desafio. Sem descolar os lábios, a alongada mulher me faz muito sentido. Sem nem olhar, sei que a conheço mesmo que não a reconheça, talvez a conheça, quem sabe não seja da vida real. Sem descolar os lábios, a mulher me diz que eu não deveria encarar a descida sozinho. Nem acompanhado. Muito menos com o carro nas costas.

Respondo que o carro é confortável, e que agradeço a preocupação, mas não se preocupe, estou bem. A mulher não desiste. A mulher não resiste à tentação de mudar de atitude. De preocupada a desafiadora em um piscar de cílios e nenhuma abertura da boca: “duvido que você desça, é íngreme demais pra você, não vai conseguir, pode desistir agora ou depois, mas será antes de ser homem o suficiente para conseguir”.

Consulto meu carro, que tem sempre sábias palavras que se dirigem a mim no automático. Ele é a voz oriental da sabedoria e da razão, e me lembra que não é necessário ceder a todo desafio para provar que é capaz; e aliás, me lembra que negá-los talvez seja para essa tarefa mais eficaz, e que isso ou aquilo é adulto, mas nem sempre é assim que se faz. Me diz que tudo isso, no entanto, é clichê, e clichê já é um pouco demais. Me lembra que se for por mim mesmo, não é o desafio que me apraz.

Cedo às suas palavras, e prometo a mim mesmo que vou descer, além do que, prometo que não tem nada a ver com a insolência e intempestividade daquela mulher. Ponho meus pés a descer, direito esquerdo direito esquerdo. O barulhinho das pedras arredondadas friccionando-se umas contras as outras é aveludado o suficiente para mostrar que têm pouca aspereza, e portanto são terreno fértil para os deslizes.

A descida se torna subitamente mais íngreme, algo próximo a 90 graus. Durante todo o trajeto, a mulher me acompanha. Enquanto a descida era fácil, ficou calada; quando se acentuou, tirou os pés do chão, claro, e passou a flutuar ao meu lado com asas negras de anjo torto, desses que não caem do céu e nem precisam. Ela tem na mão esquerda uma prancheta, na mão direita uma caneta com a qual marca com um X cada uma das opções que se enquadram na minha personalidade.

O tom de voz da mulher é cruel, ou se não é, a secura e falta de rodeios a faz soar assim. A descida é cruel e suo muito mais de nervoso que de esforço físico. Ela lê ainda sem mover os lábios, mas em voz alta, cada uma das alternativas que assinala:

[ X ] Neurose Obsessiva Compulsiva
[ X ] Depressão
[ X ] Déficit de Atenção
[ X ] Transtorno Bipolar
[ X ] Síndrome da Personalidade Limítrofe
[ X ] Alcoolismo
[ X ] Falta de vergonha na cara
[ X ] Stress não justificado
[ X ] Egocentrismo
[ X ] Baixa auto-estima
[ X ] Outros

A lista completa, não lembro, e nem se estavam todos esses presentes. Mas você, que não é idiota nem nada [no bom sentido], já entendeu o tom. E preciso dizer, a cada assinalada, ela fechava lentamente os cílios de boneca de pano, e então os abria lentamente olhando para mim. Novamente os fechava, e então ao abrir fitava o papel. Vez após vez, calmamente tentando me irritar com uma crueldade ímpar na voz que saía daquela boca fechada como se fora ventriloquista.

Tento não dar ouvidos e desviar o foco de toda minha atenção, tento dar de ombros. Continuo a difícil descida tentando não ouvir aquilo que, se acredito e assumo ou não, não quero pensar.

Detalhar cada movimento das mãos ou dos pés faz-se desnecessário face à movimentação muito mais intensa e confusa e importante e imperfeitamente precisa que minhas conexões e associações psicológicas fazem. Bloquear? Ouvir de desconsiderar? Desistir? Reclamar? Seguir em frente? Seguir abaixo, mas que caminho difícil e como é longe esse ponto lá embaixo.

Passo a passo, passo boas horas, no mau sentido, descendo. Dói, cansa, machuca o corpo e a alma. Quando penso que não dá mais pra descer, rompo a regra de nunca olhar para baixo e vejo que ainda dá e é preciso descer muito mais para chegar na parte mais baixa, para conseguir colocar os pés no chão. Romper regras é o que nos tira do desconfortável conforto. A zona de conforto é onde tudo pode ficar tão confortável que se torna desesperadamente confortável. Confortável e tudo que não está essa história para a primeira pessoa.

[Eu, primeira pessoa do singular = “euzinho sou o primeiríssimo ser humano do que é diferenciado”. Que puta necessidade de autoafirmação essa expressão]

Fato é que confortável ou não, a descida um dia acaba. E o bom de chegar lá embaixo é que do chão não passa, e metaforicamente quando você chega no ponto mais baixo possível, pode relaxar – de tão baixo, desse referencial as coisas só podem melhorar. Se forem inteligentes, as pessoas que atingem o nível mais baixo, nesse momento, se forem também coerentes, só podem ser as mais otimistas.

Cheguei lá embaixo. Chegamos. Olho para a mulher, que está diferente. Não tem mais asas e sorri. Sorri de volta. Ainda estou voltado para a parede que acabei de descer. Ela dessa vez abre a boca:

- Por que você não se vira?

- Por que você não se cala? Tudo que fez até agora foi me jogar pra baixo, jogar coisas e palavras feias na minha cara sem a menor preocupação e cuidado.

- Você aguenta. Se vira.

- Que amigável, meu deus [deus?].

- Quero dizer, vire-se. O que tem a perder? Se não gostar do que vir, vou embora.

- E se eu não quiser ver?

- Tanto pior.

Ela me pegou, pouco caso me mata. Viro e realmente me surpreendo, e olha que ela nem precisou dizer “duvido”. Não me arrependo nem um pouco do que vejo, é um deleite. Estou em um resort tropical, a temperatura é ideal. Meus pés já estão enfiados na água de uma piscina infinita. Vejo vultos tranquilos ao longe, completamente indefiníveis. É a água mais plácida que jamais vi.

A mulher volta a abrir a boca, seu olhar beira o maternal e me faz respirar diferente:

- Não se preocupe com as coisas que lhe falei, nem como o fiz. Nada daquilo importa mais. A única razão de todas aquelas palavras era te motivar, te distrair de um caminho tão árduo, tão rude que euzinha, a primeiríssima ser humana do que é diferenciado, cheguei a duvidar da sua capacidade de prosseguir. Duvidei tanto, mas tanto, que a única forma de convencê-lo a continuar seria dizendo a verdade, dizendo que não acreditava que pudesse conseguir. Você passou pelo pior, e chegou no melhor. Mas não deixou de ser quem era, deixou? Não. Apenas o que não importava ficou para trás. E quando temeu olhar para trás, mas finalmente cedeu, foi isso que avistou. Não te apraz?

Muito, que não queria acordar. Olhei mais uma vez para ela e vi quem era. Alguém familiar, alguém que faz sentido ao final, afinal não acontecera nada, absolutamente nada acontecera após isso.

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terça-feira, 18 de outubro de 2011

FORA DE MIM

PREFÁCIO

Aprendi com Sigmund algumas várias coisas em minhas leituras, e uma delas transformei em equação:

Sonho = [ideias como fatos] – eu

Sei que a Matemática tem sua notação, e se a respeitasse, usaria () em vez dos colchetes na dada expressão. Que importa, se já disse aqui e ali que prefiro [] a parentes [sic]? Ao menos os primeiros posso escolher, e por mais quadrados que sejam, são diferentes sendo sempre iguais. Ta aí uma sentença cheia de sinais.

Traduzindo #1, a sentença:
Ao – os 1ºs posso escolher, e por + ²s que sejam, são ≠s sendo sempre =s.

Traduzindo #2, a expressão:
Quando sonhamos, tomamos por verdade todas as manifestações que povoam nossa mente. Dado que os sentidos na vida onírica estão menos ativos que na vida de vigília, e dado ainda e acima disso e além que nossa capacidade e/ou necessidade de julgamento está menos desperta, a esperta da inconsciência nos espeta com um monte de sandices disfarçadas de coisas normais e fora de contexto, em formas e combinações tão absurdas que só fazem sentido sonhando – o que em parte explica a facilidade com que nos esquecemos dos sonhos ao acordar, pois causas, consequências e sequencialidade lógicas combinam todas a favor da memória. Bem, essa ausência do seu, do meu, do nosso eu, da capacidade de comparar e julgar e distinguir verdade de ilusão, essa ausência do eu que faz tudo parecer real mesmo sendo tão irreal visto daqui e Dalí. Bem, aqui estamos, dá 10 pra mim, Giba, óia. Sonho = [ideias como fatos] – eu.

E o mais maluco é pensar que talvez cada uma dessas maluquices não seja realmente a loucura que aparentam ser, mas uma outra, talvez mais esquisita e talvez por isso mais escondida nas profundezas daquele baú mental que nem sempre e talvez nunca tenhamos vontade de assumir. Pois afinal, o ruim não é pensar, mas ter tais pensamentos a nós atribuídos, não é mesmo, Friedrich?

ENTÃO TÁ, SAI A VIGÍLIA, ENTRA O ONÍRICO.
[Cortinas se abrem, vermelhas de veludo alemão]

Tudo começa numa rua em que se fosse Sábado haveria feira. Por isso, se não tem feira e não é Sábado, só pode ser o quê? Isso mesmo, hoje é Dô-minnn-go – bem Cid Moreira.

Na rua onde se fosse Sábado teria uma feira, há uma casa estreita. É uma casa de mãe, sem dúvida o é, fato que explica a razão pela qual posso entrar tranquilo como estou pelo portão de pessoas, feito de ferro e com pontudas ponteiras nas pontas, contíguo a um portão de automóveis – ou de automóvel, para ser mais preciso, pois vaga só há para um.

Passamos pelo portão de pessoas. O primeiro plural é porque me acompanham dois cachorros, o que me leva a uma correção: o portão não é de pessoas, mas de entrar andando, afinal cães por ele também podem e passam. Chamemos-no apenas de portão, ou portão de ferro na necessidade de um sobrenome, ou ainda portão pequeno, na necessidade de uma classificação em oposição ao portão de passar com o carro – que é grande.

Entramos pelo portão pequeno os dois dálmatas e eu. Minha mãe cozinha na cozinha, e enquanto meu corpo vai encontrá-la, minha consciência fica para ver que deixei o portão semiaberto, assim como a porta de entrada – ou saída – da casa. Pela fresta, meus dois dálmatas entram e saem livremente, rapidamente, acompanhados de um terceiro cão, dálmata também.

Depois de brincar na garagem, os vejo entrar e correr para o fundo pelo piso de tábuas corridas longitudinais, escuras e lustrosas, reflexivas. Acompanho-os ao longe, voltando minha atenção para onde vão e de onde venho, de onde vem meu corpo. Assim que ele me alcança – verdadeiramente cool essa sensação –, flash frame, mudança de câmera [Seria isso uma mudança na pessoa da câmera? Tenho dúvidas, afinal corpo e alma somos um só].

Assim que o corpo me alcança, viramos juntos e olhamos para fora, apenas eu. Vejo pela fresta da porta entreaberta um mendigo que força o portão igualmente entreaberto. Por onde tenta passar, ele mesmo percebe que não vai conseguir, e que para seguir com seu plano, precisa subir – o que faz.

Ao que começa, ordeno gritando que pare. Bem, o grito parece incomodar ainda menos que as pontudas ponteiras sobre as quais apoia as mãos sujas antes apenas de sujeira, agora com um pouco de sangue. Ordeno, gritando, que pare; quando paro, ele grita algo como “eu vou entrar nessa merda e levar essa merda de carro, porra, e vê se para de gritar igual uma puta histérica filha da puta, caralho”.

Corro para dentro com sangue nos olhos, então para fora com um cajado nas mãos. Enquanto ameaço o mendigo com o pedaço de pau, duas coisas acontecem: grito o nome do meu irmão, João, e um segundo mendigo observa a cena toda, são dois. Grito com todo meu ar, e com toda a força restante do ato de golpear. Meu irmão não desiste de não aparecer, sinto uma angústia da frustração de não consegui-lo convencer, mas felizmente o mendigo desiste de entrar.

Corro novamente para dentro, onde enfim encontro meu irmão e o convenço de que a situação é mesmo grave e de que preciso da sua ajuda. Preciso ser muito convincente, e sou ao discursar: “vem comigo, precisamos matar esses filhos das putas. Mas antes precisamos encontrá-los”.

Subimos a rua vazia de Domingo. Aqui tem uma inconsistência nos fatos que pode afetar toda a interpretação da história: tenho certeza de que seguimos para a direita, tanto quanto tenho de que a padaria onde chegamos fica para a esquerda. E você, que já leu algum sonho anterior ou vai ler um posterior, se é que isso ou tal pessoa existe, não deve ter percebido o que vou revelar a seguir, mas direita e esquerda são duas coisas que muito me interessam. Assim em comum temos os aparelhos de som, as técnicas de desenho, as setas dos automóveis, calçados em geral – a não ser pantufas –, ears e headphones e tantas outras coisas para as quais L e R fazem algum sentido e diferença.

Subimos a rua vazia e chegamos à padaria cheia. Aqui, deixa comigo: “eu quero saber quem de vocês sabe quem são aqueles dois filhos da puta que estavam rondando a área, ameaçando entrar na casa dos outros e, mais importante pra mim, ameaçando entrar na casa da minha mãe. Quero saber quem são e onde estão esses arregaçados do caralho, porque se ainda não são, vão ficar arregaçados de verdade”.

Mais uma vez me dou conta que estou fora de mim, e dessa vez de duas maneiras: 1] estou fora de controle; e 2] vejo meu corpo se mexer e minha garganta gritar de longe.

Como já sei tudo que estou pensando, paro de prestar atenção em mim e começo a olhar ao meu redor, o que vejo? Os dois mendigos assustados, tentando passar despercebidos, semiocultos por um telão de projeção onde aquele bando de barrigudo tomador de cerveja assiste a partida e enche a cara ao esvaziar copo após copo durante nunca menos que cento e cinco minutos mais acréscimos.

E como meu corpo e eu somos um só, assim que tomo consciência de que são eles, meu corpo parece sentir o mesmo. Só dá tempo de matar o rabo de galo proibido, bater o copo americano Nadir Figueiredo sobre a vitrine opaca de pastéis velhos e ovos coloridos cozidos e partir pra cima. Vai ser um deus [deus?] nos acuda. Um pega pra capar. A coisa vai ser tão feia, tão feia, que vai ser lindo quando terminar.

Vou pra cima deles finalmente, chegou a hora. Acontece o que é típico das brigas de bar: fico cego, mas não para tudo. Fico cego para tudo ao redor, consigo ver tudo que preciso tão claro, que todo o resto fica escuro. Brigar na rua é assim, uma vez que o sangue esquenta, nada mais importa. E tem mais, o sonho de hoje não tá aquela frescura de se reprimir, não. É soco na cara.

Mas sempre tem uma merda pra atrapalhar. Eu soco a cara dos filhos da puta. Soco as caras sujas deles, soco os rins, o baço, bato pra valer. Só que por mais que eles gritem, não parece que está doendo. Lanço mão do cajado, e o pau ta comendo solto. Paulada no nariz, paulada na nuca, na testa. E os caras gritando em azul.

Putaqueopariu, azul? Na boa, azul não dói.

Os dois mendigos agora são três, e os três estão caídos no chão de costas para baixo e bundas ao alto. Sem dó, eu continuo castigando os malditos, o cajado tá até gastando. Já pensei que nada poderia ser mais humilhante que um tapa na cara com as costas da mão, mas pode. Imagina o que tava rolando enquanto descrevo pra você: depois de socar os três mendigos sozinho e pra valer, eles caem no chão de bundas ao alto e gritando azul, mas não paro, empunho o cajado e bato no cú deles. Bato pra machucar menos que pra humilhar. Se fosse um sonho onde coisas malucas podem acontecer, chamaria um cavalo.

É estranho, ele parecia valentão antes, o mendigo que queria arrombar ou saltar o portão e cair pra dentro, mas agora não passa ele mesmo de um arrombado. Agora nenhum dos dois que viraram três esboça reação. Eles parecem aceitar toda penalização a que lhes imponho. E nesse domingo eu estava cruel – ainda parecia que eles estavam azuis.

Então foda-se, vou até o fim. Já foi soco, chute, paulada... vamos pra garrafada. E a padoca ta lotada de garrafa. Garrafa na cara. Garrafa cheia de whisky, garrafa cheia de cerveja, garrafa cheia de raiva. Quando cada uma delas bate na cara dos oponentes, aí sim dá pra sentir a dor. Agora tá tudo vermelho, vermelho igual a cortina de veludo alemão. Agora tá doendo, tá machucando de verdade. Vou ficando ébrio da raiva e da virtual insatisfação que toda porrada do mundo não vai esconder, ou melhor, talvez só faça esconder – mas não livrar. Estou bêbado, completamente fora de mim e tomado pela raiva, que é insaciável. Causo desgosto, mal estar.

Os bêbados barrigudos olham e choram pelas garrafas que se vão, ninguém é condescendente pelos que apanham, apenas pelos litros de cachaça que se vão pelo chão, junto com o sangue. Mas do sangue, apenas aqueles três coitados vão sentir muita falta ou falta nenhuma.

Um amigo do trabalho surge do nada com a missão de dar força, apoio, de corroborar toda a minha alforria. Me entrega na mão uma gigante garrafa de whisky, uns cinco litros. O líquido é bem turvo, não parece nada com whisky, parece um chá velho com partículas em suspensão. Meu amigo chacoalha a garrafa para misturar, dá nojo.

Uma mulher indefinida aparece com a razão e diz “é normal, tudo hoje em dia tem conservante. E tudo que precisa de conservante é porque queremos artificialmente fazer com que dure mais; queremos fazer com que as coisas durem mais do que foram feitas para durar naturalmente. Mas quando duram mais do que deveriam, as coisas podem ficar feias. Hoje tudo tem conservante, o que deixa tudo ruim”.

Nos meus sonhos e na vida, parece que as mulheres sempre têm razão. Não todas, o que leva a não sempre, mas gosto de pensar que sim.

Bom, com isso eu concordo: as coisas têm que durar o tempo que foram projetadas para durar. E se não foram projetadas, tanto pior, melhor que nem existam. O que não pode é querer que tudo seja pra sempre. Nem whisky.

E aí, como se não precisasse fazer sentido, surge um questionamento: será que há chance de o melhor sabor de hamburger ser o sabor do hamburger caseiro?

Sou eu, ou essa última frase não faz o menor sentido?

Sei não, mas não sei nem se estou aqui dentro de mim. Porque olha, se tudo isso se permite acontecer pela minha ausência, pode-se dizer que eu me censuro pra caralho.

Vou dormir pra me ver livre de mim.

Um soco.

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