sexta-feira, 15 de abril de 2011

Irreversível

Acordei, mas não é dia.

Acordei e tirei essa foto da lua, e assim pode ver que não é dia. Pela posição que ela está, ainda perto do prédio em frente, pode ver que não é nem perto de ser dia.

Não é a primeira vez que a insônia me acomete nem a décima, então sei o suficiente sobre essa sensação, o suficiente para concluir após pensar só um pouquinho, vale mais a pena se levantar e fazer disso algo útil que grelhar na cama como um frango de domingo.

Quer saber qual é a sensação, caso passe por isso? Meça sua atividade cerebral. Seja honesto consigo mesmo, e perceba que caso seu cérebro esteja disposto a se mexer, mesmo que boceje não dormirá. Na verdade, quando suas conexões neurais levarem o impulso de bocejar ao maxilar, é por uma e apenas ela a razão disso, mostrar que o que você deveria estar fazendo era outra coisa, também conhecida como nada, dormir, descansar e outros nomes que você deve conhecer. Mas o cérebro é como deus [deus?], é perverso, cruel e sarcástico e te pregou uma peça, não bastasse isso ainda fica te lembrando, TE lembrando: mesmo que boceje, não dormirás. Usei e ressaltei o TE apenas para justificar o dormirás, elementos do estilo dramático que cabe ao parágrafo.

Antes de tirar a foto da lua, acordei assustado e cheio de epifania. No sonho foi muito claro o que me fez acordar, mais uma explosão. Meus sonhos são assim, têm recorrência e correlação. Deve ser porque trabalho com internet, quiçá condicionei este cerebrinho a trabalhar com âncoras. Quem sabe não é ele mesmo uma âncora? Bem, a explosão. Isso é assunto para um próximo parágrafo, antes que este se torne longo demais [até aqui já é o segundo em quantidade de linhas - em Trebuchet MS corpo 12, folha A4 e margens padrão MS Word, conta oito -, e todo mundo sabe que 8, de lado, é infinito...]. Se não tomar cuidado, este parágrafo fica muito longo e enfadonho [9 linhas], já pensou se fica mais longo que o anterior? Comprometo toda a leitura, porque o cara [você que lê] vem de um parágrafo que na minha vista atual tem 11 linhas, tá de saco cheio, e na sequência se depara com um ainda maior? Sério, to brincando com fogo, você vai acabar indo embora. Pronto, 13. Adoro 13.

Nenhum desses números faz sentido aqui, outra diagramação, fonte, corpo, rendering, mas acredite se quiser, eram números reais [de realidade, não de conjuntos].

Após uma contagem regressiva agoniante, a bomba explode tão forte no sonho que acordo assustado e cheio de epifania, sem tempo de no sonho estar agonizante. Verdadeiro corte seco. Percebo que a contagem regressiva do sonho tinha grande referência do apito de marcha a ré de um caminhão que tentava estacionar na obra em frente à minha janela. Pelo volume, ainda não decidi se talvez não estivesse tentando estacionar dentro dela. Fecho a janela ruidosa, fecho a janela antirruído. O MS Word que tenho instalado ainda não sabe que antirruído se escreve agora assim.

Deixo o caminhão de lado [sério, ele está de lado na rua, de atravessado, saca?] e caio na irreal da minha epifania que não é uma, são três. Se você leu o sonho passado, sabe que faz todo sentido. Segundo um site fuleiro, sonhar com bomba quer dizer presságio de más notícias. No sonho anterior, sonhei com três. Agora tudo se encaixa: a pessoa doente, a amizade ausente, o sentimento impotente. Não preciso entrar em detalhes sobre cada um deles, mas se tenho algum crédito como pessoa ou pseudo escritor para contigo, creias no que digo – existem uma pessoa doente e uma amizade ausente e um sentimento impotente. Bom, talvez todos nós tenhamos tudo isso todos os dias, mas o fato é que essas notícias e/ou acontecimentos tomaram lugar apenas imediatamente após o sonho das três bombas.

Se você já leu minha descrição desse blog, ali no alto e à direita, viu que “há aqui muito ceticismo para crer que sonhos possam ser premonitórios”, e agora perdi um pouco de crédito porque estou incoerente, certo? Errado, mesmo se você leu, tenho CER-TE-ZA de que não pensou nisso e nem pensaria se eu não dissesse.

Antes da contagem regressiva agoniante inundar os ouvidos de todos em meu sonho e minha rua, no primeiro palestrava sobre o dia em que minha Terra parou:

- O dia em que a Terra de alguém pára [eu gosto desse com acento, sei que não devia] é aquele dia em que a pessoa acorda meio mais ou menos, mais menos que mais, mas tem lá seu tripé de sonhos que definem um norte, uma sorte e não morte. Um tripé porque tripé é lindo e estável, é forte. Mas essa pessoa, que já está mais pra menos que pra mais, se força a sentir mais forte, sentir menos pra menos e mais pra mais, e coloca esses sonhos em cima da mesa pra toda vez que desviar o olhar da entediante tela do computador, possa vê-los e sentir-se mais pra mais. Aí alguém liga “oi, tudo bem? Tem outrém que não tá bem”. Tripé é lindo, mas todo mundo precisa estar na mesma pegada. Se um dá pra trás, já era, a primeira bomba explode e a reação é em cadeia. Efeito Borboleta, dominó, chame de que quiser. Eu chamo de merda. Logo mais, mais tarde, a pessoa de quem a Terra vai parar recebe alguém à sua esquerda - sempre a esquerda, sê gauche – que, sem dizer palavra, te olha no fundo do olho tão fundo que bate no fundo de teu crânio já vazio por dentro e te coloca na porra de uma perna só [dicionário de MS Word não tem a palavra porra, fica a cobrinha vermelha embaixo, politicamente correto do cacete – cacete tem]. A segunda explosão te mutila pra valer, soldado, mas sabias que caminhavas por um campo minado talvez por ti mesmo armado e nunca esquecido, apenas desacreditado. E se a segunda explosão era suficiente pra te derrubar, agora alguém pode te empurrar ladeira abaixo sem nem mesmo estar bêbado, que não está. Aliás, pra efeitos dramáticos, por que não faz você mesmo isso? Fica bonito. Então a pessoa de quem a Terra vai parar está desequilibrada, qualquer um estaria, e nervosamente fala demais. Falar demais não precisa ser muito, apenas a coisa errada, na hora errada, pra pessoa certa. Junte a coisa e a hora erradas e talvez a explosão não te mate, mas com uma gota da pessoa certa, o estrago não tem conserto. Bum. A Terra parou, e essa pessoa que era sua dona termina entregue ao vazio e sem sonhos* um dia que somente houvera começado possível, plausível e minimamente aprazível pelo potencial de seus sonhos. Potencial é lindo enquanto existe. Por isso muita gente vive a realidade e sonha o platonismo. À pessoa de quem a Terra parou, resta apenas dormir.

A mim, resta apenas ficar acordado.

*Essa teoria já ganhou poesia, que por sua vez virou música. A letra se encontra aqui.

Piiiii, piiiii, piiiii, piiiii, piiiii... Paro a palestra e ligo o alerta, algo vai explodir. Piiiii, piiiii, piiiii... Bum!

Acordo, vejo o caminhão, caio em mim e na cama, levanto de novo com a epifania, minha Terra parou e meu cérebro está a mil, não vou ficar nessa cama grelhando como um frango de domingo, já não é a décima vez que isso acontece comigo. Aliás, o Dèja Vu de ontem talvez fosse indício de que algo estivesse muito errado ou fosse ficar. E os gatos com quem cruzei, ou melhor, que cruzaram meu caminho hoje no parque não eram pretos, mas como era noite e à noite todos os gatos são pardos, pode ter a ver...

Fui pra varanda e, como não era nem perto de ser dia, tirei uma foto da lua e decidi escrever.

Você já se masturbou sonhando? Sei que está talvez fora do seu controle, mas deveria. A origem pode te dar uma luz. Mas pensa, pro seu cérebro é a mesma coisa, só que sem a sujeira [mais no caso dos homens] e o esforço físico. E aliás, mesmo se fosse necessário esforço físico, pensa que em sonho segundos duram horas. Talvez só de encostar rolasse. É o paraíso do ejaculador precoce, imagina isso, o cara transa um minuto e a namorada pensa que foram semanas! Claro que tem o porém de ela precisar estar dormindo, talvez hipnótica, mas isso é detalhe. Se bem que transar com alguém dormindo beira a necrofilia, de certa forma. Bom, mas o cara está desesperado! E se for bom para os dois... entre paredes ou ao ar livre, o que o casal faz é problema dele e dela, dele e dele ou dela e dela.

- Por falar em dela e dela, existe camisinha para lésbicas?

- Não sei, mas creio que a posição das duas tesouras em riste [semiabertas uma de frente pra outra se enfrentando, uma querendo cortar a outra] não seja para as lésbicas o mesmo que o papai-mamãe é para os casais tradicionais e acomodados e entediantes.

- Ué, então por que chamam de colar velcro? De briga de aranha?

- Licença poética?

- Eu não vejo poesia nenhuma nisso; aliás, como é então? Hein?

- Sei lá, é tipo todo o resto, o envolvimento, o carinho e tudo mais, inclusive, aliás, talvez e provavelmente uns acessórios.

- Gente, eu tinha uma amiga, na verdade duas, que odiavam transar com os namorados. Eram frígidas, não gostavam do ato em si. E aí elas ficaram, e são uteromaníacas** agora.

**Li essa palavra no dicionário de sinônimos um tempão atrás, uteromania é sinônimo de ninfomania. Mas aqui, agora, foi a primeira vez que consegui empregá-la e de fato fez um sentido sarcástico que, confesso, me fez sorrir com o canto da boca.

- Faz todo o sentido, se elas não gostavam do ato em si, a única coisa que não vão ter agora é isso. Assim até eu.

- Que sensível! Não tem a possibilidade delas serem assim, delas gostarem uma da outra e terem se encontrado, não?

- Ter, tinha.

- Ha, ha, há, idiota. Não, sim, existe essa possibilidade, mas é que eu acho sem graça.

- Você.

- É. Mas ainda acho que lésbica não gosta de sexo.

- Eu gosto.

- Eu também, lógico. Acho que isso é muito importante, é fundamental no relacionamento, senão pára [de novo] tudo, que mundo você vive?

- Por falar em mundo, já te contei minha teoria sobre o dia em que a Terra de alguém pára [...]?

- Não, como é?

Começa uma teoria infinita sobre um tripé de sonhos, tripé é lindo, sonhos que seguram uma pessoa motivada, sonhos que são arrancados cada um à sua maneira, todos explodindo. Piiiii, piiiii... contagem regressiva de bomba, uma puta explosão. Acordo, caminhão, epifania, minha Terra pára [4], já sei que é insônia, não é a décima vez, cérebro a mil, vou para a varanda, tiro uma foto da lua pra provar que não é nem perto de ser dia e começo a escrever.

Agora vou ali trocar uma ideia com Schopenhauer. Afinal, a insônia é irreversível.

Sacou ou quer que desenhe?

Uma foto da lua pra provar que não era nem perto de ser dia, apesar de já ser muito mais. Puta foto de merda, devia estar dormindo.



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terça-feira, 12 de abril de 2011

Trois Couleurs

A Intensidade é Vermelha

Uma ameaça de bomba no metrô. Corre corre geral, como o cheiro do leão que errou na tática e se entregou às zebras por estar a favor do vento. Aqui, todos estão contra o tempo. Crianças e idosos por último. Após alguns instantes, uma real, mas pequena explosão na plataforma não mata ninguém, a não ser um simples professor de física, que se vai de susto. Que deus [deus?] o tenha.

Uma mulher linda, esguia e francesa - ou marroquina - pisa seu salto plataforma adentro enquanto o alarme e os alto-falantes insistem que não, que saiam todos e que freiem as locomotivas. Quando o primeiro vagão finalmente estaciona, ela entra friamente, tapa com a ponta do indicador a boca assustada do maquinista, ou seja lá como se chama o motorista de um metrô, sua unha descascada de longe é também sensual, e o provoca com o olhar de baixo para cima. Talvez você saiba do que estou falando.

Ele não consegue relaxar, este homem está tão tendo que não haveria de conseguir escapar. Fazem amor ou sexo, depende do ponto de vista. Todos percebem que de terrorista ela não tinha nada, mas apenas uma mulher que ama demais anônima.


A Brutalidade é Amarela

Uma vila qualquer, remanescente da colonização operária. Vizinhança cordial, exceto pela última casa à esquerda, sempre a esquerda. "Sê gauche na vida".

Uma cadela apelidada Chiquinha é de todos e de ninguém, especialmente não é dele, Carlos. Carlos é manco e ranzinza. Carlos espanca sua prostituta, porque aquilo não se pode chamar esposa sob risco de ofender todas as demais que ocupem tal posto, espanca sua prostituta a noite toda, chama-a por todos os nomes que não o dela nem meu amor. Chama-a de cadela com muito rancor. Diz que é maculada demais para carregar em seu ventre, dar à luz e de mamar a um filho seu, cadela.

Um estampido seco, um latido.

Pela manhã, Chiquinha padece. Quando cada um morador aparece, a cena a todos compadece. Todos os filhotes estão cobertos com curry.


A Incredulidade é Verde

O inimigo invisível da humanidade é ela mesma. Sua ciência e sabedoria e técnica de guerra nos levou todos ao extremo. O ano é 2011, o fim pode ser ou não iminente.

Uma força indefinida e megamente poluente destrói aos poucos a única fonte de água corrente limpa daquele velho e seco continente. Uma ameaça tóxica verde, meio marrom e meio nojenta, totalmente nojenta por ser capitalista, toma conta de lá. Ninguém quer saber de justiça, quero minha parte em dinheiro. Água e segurança são para quem pode pagar.

Nossa agente pacífica desfere golpes firmes, daqueles capazes de tornar o mundo um lugar melhor, e apesar de estar sozinha em seus sonhos, e inclusive no meu nesse momento, encontra em seu cérebro a brilhante solução para desativar a tal bomba contaminadora da nascente.

Zap. Tchum. Swoooosh. Pow. Edgar Alan Poe e até o clássico IÁ!

Histórias de ficção científica não são meu forte, assim como preparar doces na cozinha, mas essa heroína salvou o mundo e está disposta a fazê-lo novamente. Deixa a oportunidade e a causa certa aparecerem, pra você ver...

-

Apesar de Kieslowski estar evidente, sinto um pouco de Kurosawa. E claro, um monte de porcaria, porque de fato esses caras e eu estamos a muito mais que seis graus de separação.



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domingo, 10 de abril de 2011

Casal irreal

Quem os avistasse de longe pensaria se tratar de uma princesa e seu príncipe.

Quem visse de perto, no entanto, não se enganaria. Tratava-se de uma princesa, de fato, mas acompanhada de um simples plebeu. Bem, não, não tão simples, não, um plebeu diferenciado e diferente e desafiador e desacostumado às convenções dos mundos real e Real. Preferia um mundo irreal. Nisso combinavam.

Afora essa confusão possivelmente causada pela distância do olhar de quem olha, bisbilhota, especula e exagera e inveja, de perto era fato – de perto não importava a casta, a classe, a estratificação do modelo social, era fato que estavam apaixonados. Nem o maior dos céticos e desiludidos poderia negar.

Havia em seus olhares não o brilho de quem enxerga o mundo todo e o reflete. Havia, em seus olhares, a opacidade de quem enxerga uma e só uma coisa e descarta todas as outras, em verdade uma e só uma pessoa, um e só um ao outro. Mais nada. E tendo um ao outro, nunca nenhum dos dois se sentiria só, nem nunca nenhum dos dois precisaria de mais nada.

Tudo que houvesse de mais, seria demais.

Mas há nisso algo de novo? Não. Tudo que há nisso é tudo o que há em centenas de milhares de histórias contadas, escritas, imaginadas, inimagináveis, jamais contadas, impensáveis, histórias de homem e mulher e amor e causas impossíveis.

Por quê?

Porque o que se passava entre eles nesse período era perfeitamente simples e simplesmente natural. Comiam e bebiam, falavam e escutavam. Sorriam, e de tanto sorrir, choravam. Andavam pelo reino, onde as partes nobres eram por ele aprendidas, e as partes cruas eram por ela devoradas. E claro, como haveria de ser, isso não era senão a absoluta completude.

Mas não existe tal coisa sem uma outra. Não existe a maldita completude sem a bendita inveja ou vice-versa. Ou outras coisas, como a falsa moral, a falsa amizade, a falsa verdade... A moral e os bons costumes faziam com que a nobreza os julgasse inapropriados, indecentes, um casal impossível e infrutífero, não capaz de fazer jus às honras e tradições reais. A doce temeridade do povo os condenava não por nada que não fosse medo do potencial, que a seus olhos ignorantes parecia negativo, pois são incapazes de perceber que toda mudança para melhor nasce de um desconforto, de um medo inicial e de uma angústia sem fim, sem fim até que acabe. São incapazes de perceber o verdadeiro potencial das coisas, mas isso não é culpa deles.

Moral ou medo, por fim ambos confluíram para a pré-sentença que os levava ambos ao banco dos réus. Mas a contumácia os impedia de reconhecer essa autoridade, e assim continuaram.

Uma bela tarde, nadavam no mar defronte às varandas do palácio. A água era limpa como suas consciências. Talvez.

Na bela tarde em que nadavam no mar defronte às varandas do palácio, uma plebeia fazia o mesmo. Não fazia porque queria, mas porque cuidava dos interesses de outro alguém. O rapaz nadava de costas para o mundo, e ela de costas para o sol, sobre ele, deitava e sorria e cantava olhando em seus olhos opacos. A plebeia, nesse momento, sentiu a ternura e agrediu:

– Vocês deveriam se casar, fazem um belo casal.

Talvez. Pois a princesa abalou-se:

– Com que direito e com que conhecimento se dirige a mim e especula sobre o que devo fazer? Isso que profere é uma... isso é uma... é uma... uma...

Seu par, até então feliz, chateou-se por duas razões – por vê-la desfalecer em seus braços e afundar, e por perceber que ela também não admitia lá no fundo de seu coração que fossem ambos capazes de ser felizes. Percebeu naquela hora que isso era uma aventura, desventura, o que fosse, mas não era amor.

Bem, como disse, afundou. Ele afundou junto. O tempo, digo, o clima, virou de pronto, e junto afundou. Ele nadou até o fundo, baixou seu orgulho a um nível onde jamais esteve antes, e tentou resgatá-la. A chuva veio forte, e começou a escoar toda a água como uma enxurrada ou um tsunami em que ele, com ela nos braços, definhava.

Perderam-se os sentidos. Ambos desacordados. A boa notícia era que a essa altura, apenas um amor morria, ou meio que fosse, o dele por ela.

Não se sabe quantas horas ou segundos se passaram até que a intensa sucção nesse túnel cessasse. E quando cessou, ele recobrou os sentidos. Recobrou os sentidos e decidiu que não deixaria de amá-la. Pegou-a nos braços e correu em direção ao castelo. Correu em direção ao castelo, onde as sirenes soavam alto e socavam forte contra seu estômago.

Socou forte contra a porta, que nunca houvera sido trancada e agora não cedia ao mais forte de seus apelos. Tentou a janela, e estava trancada, mas uma delas cedeu. Jogou a princesa para dentro e viu uma ama se aproximar. Tentou dar-lhes as costas e fugir, no entanto sentiu que não tinha por quê fazê-lo. Na verdade, seu coração foi ao seu ouvido e disse “rapaz, você não pode fazê-lo, sob pena de perder a vida que lhe cabe e resta, e não morrer apenas para viver sem isso”.

Pulou janela adentro. O corpo dela jazia, em verdade. Estava fria, roxa, imóvel. Ajudou a ama a colocá-la na banheira quente. Acho que era hipotermia. A ama queria que ele partisse, e rudemente dava isso a entender. Mais uma vez, ele quase cedeu, se não fosse o suspiro assustado que ecoou forte dentro de seus ouvidos, era ela. E era mesmo ela, pois pediu que ficasse.

Virou-se e viu seus olhos quentes dentro de um corpo frio. A ama esfregava firmemente seus pés, suas mãos com água quente, a fim de vencer o frio que lhe abatia. Ele disse que de água já bastava, haviam ficado muito tempo dentro dela, que visse como sua pele enrugava e já dava sinais de romper. Disse que apenas a terminasse de limpar, e que a colocasse bem rápido sob cobertores e edredons de inverno, não de verão, e que acendesse a lareira, e que lhe desse de beber algo quente, e que a deixasse viver.

– Saia daqui por onde entrou antes seja tarde e jamais, jamais saia, ou que saia como jamais entrou.

Mais uma vez, viu-se a si mesmo virar as costas e sair para não causar mais estragos. Sentia que a culpa do mundo era sua. E ao que sabia, sabia que seu sentir não era o mesmo de alguém, era o mesmo de mais ninguém.

Mais uma vez, ouviu a voz doce irromper em seus ouvidos.

– Se me ama, minha ama, me deixa. E você, se me ama, jamais o faça. Se me ama, me coloca na cama, me cobre com tudo que sente, sente ao meu lado e me esquente.

Eis que então o único líquido de que tinha realmente medo surgiu e lhe arrepiou de dentro pra fora. Nenhuma torrente o assustaria, como não o fizera, mas uma lágrima era capaz de fazer com que tombasse. Felizmente, essa era uma lágrima crente, uma lágrima que lhe colocava de volta no posto de acreditar, e não o contrário.

Olhou para a velha cama de molas, com colchão de molas já marcado de quem ali por tanto tempo deitou, percebeu que nunca ali havia estado apenas porque era agora que ali deveria estar, e pensou:

“É sempre bom ter uma cama de molas por perto, na casa de seus pais. Pois quando você gosta, tem sempre uma ao alcance para nela se deitar quando sentir vontade. Quando não gosta, porém, é bom também poder olhar e saber que em uma dessas nunca mais precisa se deitar”.

É bom saber que o que é e o que vai ser são ainda escolhas que cabem a você e a quem escolher. É bom saber que onde deita é onde quer e onde lhe cabe uma parte. É bom saber que onde deitará já existe pra você.

Será? Afinal, muito fatalismo faz mal à cabeça.

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