segunda-feira, 24 de outubro de 2011

MAIS NUNCA É O SUFICIENTE

Agentes do governo surgem do lado de fora. Os ouriços no dos muros não resistirão mais que alguns instantes, pois alguns cobertores de mendigo dão, facilmente, conta do recado.

O altofalante na parede, assim como o terceiro monitor ao seu lado, não tem botão I/O. Uma coisa bem Orwell, e começa a funcionar. Vinte e sete anos se passaram, de forma que não se contesta mais a qualidade da imagem e do áudio, mas em tese nem o conteúdo do que se vê ou ouve, e isso persiste desde aquele então de um futuro previsto e que já é passado há tempos.

Mas assim como o futuro daquele passado cedia espaço a insurgentes, este presente o faz com mais armas e mais premonição. O segundo monitor é onde a mágica acontece, mas no primeiro é onde reside toda a fidelidade do que se vê, e de onde sai o som daquilo que se precisa ouvir. Máquinas enormes dão lugar a imensos emaranhados de fio para carregar nossas internets móveis.

A capa de um documento no monitor 1 anuncia em graves letras serifadas a troca de um ministro na área rural. A vista da janela denota que não há mais muito tempo para resistir. Além disso, denota que estamos na área rural, logo chances há de que seja aqui o alvo da queda.

Cercas de arame lutam contra fibras, luvas e borrachas, resistindo bravamente à investida por quanto tempo conseguem, considerando que há muito vivem de sol, capim e da chuva que cai quando as pessoas sensíveis do andar de cima decidem lembrar suas razões de ser.

O presidente desce as escadas, e se desse a menor pinta de que soubesse o que fazer, seguiríamos suas ordens. No entanto, a pinta que pinta é daquelas que até mesmo um açougueiro classificaria como alvo a ser eliminado. Bem, cirurgia é a única saída. Uma lenta investida com os dentes de uma serra tico-tico cega dão conta do procedimento. Salvamos a pinta, e nos livramos do mal que esse presidente representava como ameaça à sua existência.

A vantagem de dar uma boa pinta é que sempre impressiona. Nesse caso, bastava lançar mão dela para que dissessem “bem, este sujeito está com pinta de presidente” – o que seria sempre verdade.

Mas como isso pode ajudar no plano? Aliás, que plano?

Primeiro, como toda boa estratégia, é preciso mapear o terreno. Só depois definir os objetivos, e então as metas, táticas e medidas de sucesso.

1] O terreno é retangular, sem grandes aclives ou declives. Quem fica na parte baixa tem a vantagem da proximidade em relação à porta de entrada e saída, e trabalha com o pouco acidentado relevo ainda assim a seu favor. Correntes delimitam a área de atuação. É impossível determinar se falamos de uma fazenda ou de uma rua – o pavimento ao redor não parece levar a muito longe, e o gramado está mais para capim. O concreto das hastes não racha, mas elas em si rangem.

2] O objetivo é chegar na cúpula do abat-jour que acende com um simples toque de pele, antes que o abat-jour automático se acenda, para então forçar uma reunião às cegas.

3] A meta é encontrar as pintas simétricas que marcam o lugar certo, bem entre elas – nem mais para lá, nem para cá. Para isso, precisamos de tempo porque afinal, mais nunca é o suficiente.

4] Toda a tática se baseia no uso de um relógio suísso sem corda e atrasado. Demos a nós e ao tempo o benefício da dúvida, e a chance de estarmos errados mais que certos. Isso vai gerar bastante confusão.

5] Sucesso seria receber a medalha invisível de honra ao mérito pelas mãos grandes da dura, macia, enorme e rude justiça.

É chegada a hora. A rádio-chamada é feita sem aviso prévio. Um último olhar pela janela antes de calçar o coturno e encaixar a mochila nas costas. Ao sentir seu peso, no entanto, fica evidente que só é possível andar com ela para trás, o que leva à inegável lógica que vestindo-a na pose marsupial há mais chances de evoluir. Nessa última olhada, percebo que o teto do campo de batalha é mais uma vez vagabundo, feito do mais vagabundo plástico de cortina de chuveiro. Tanto pior para mim, que não me contento com menos que um box decente e espaçoso.

Feito.

O peso de duas vidas na região abdominal é o que faz do canguru o que é. Essa sensação não passa despercebida. É pesadamente suportável, na tênue linha que divide a capacidade da mera e simples desistência. Me sinto gravemente grávido. A forte chuva que cai sobre nossas cabeças denota minha razão ao ter desconfiado e renegado a capacidade da cobertura.

Após uma breve discussão que parece inútil, pois os convivas podem sem piedade ser sentenciados menos inteligentes que o necessário, dar as costas é tarefa fácil perto do esforço que era dar ouvidos.

Já distantes cerca de 13 passos, esses ouvidos escutam uma última reclamação sobre a falta inadmissível e substancial de um redator. O dedo indicador H aponta para o céu, e o G aponta para a cabeça, de cima para baixo. A chuva cai incessante, porque novamente, mais nunca é o suficiente.

Martelo com a mão o relógio de metal a fim de encaixar os elos da pulseira antes de botá-lo para funcionar.

Ao chegar na fachada do velho edifício novo, um toldo se projeta bastante nova-iorquino, e o rapaz na porta é cortês como não haveria de ser para todos, estende uma mão dura, macia, enorme e rude. Seu pin de identificação diz Lauro.

Muito simpático, ou talvez apenas com empatia natural, sugere que suba. Diz que as vantagens de morar nesse edifício vão além do nome de outrora, mas passam por cuidados que podem ser deixados de lado sem deixar a vida passar em vão. Nesse lugar a vantagem é que aquilo que se realmente deseja lhe vai aguardar, mesmo que à primeira vista não agrade – o que, segundo Lauro, não é o que vai acontecer.

- Assine aqui – insiste.

- Para quê?

- Sua medalha de honra ao mérito. Ela é dada a quem faz por merecer.

Por hoje é apenas uma, mas lustre-a todos os dias e será eterna, como um bom mérito deve ser. Afinal, mais nunca é o suficiente.

Um comentário:

  1. Li esse título e pá: me apertou o coração.
    Depois de ler três vezes todo esse texto, pra entender onde é que o titulo se encaixa no restante, eu lembrei: isso tudo é realmente um puta dum absurdo.
    Um absurdo bem escrito, pelas mãos do uber capricorniano, do rocker cool, que tem gosto pelo pessimismo, coragem de um escritor maldito e a melancolia de um romântico grunge.
    Vc é ótimo Dani.
    É o cara mais ótimo dos ótimos, porque vc é isso: vc passa do limite.
    More is NEVER enough.

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