quinta-feira, 20 de outubro de 2011

PSICOLOGIA REVERSA


É essencial ter os pés firmemente plantados no chão para nos podermos lançar no espaço - Miró


Não acontecera nada, absolutamente nada acontecera antes disso. E por essa razão, me sentira impossibilitado de fazer outra coisa que não fosse montar aquela moto e disparar a toda velocidade por onde desse, subir por onde se desce e irromper pelo ar com uma inércia noir.

Não obstante, o desejo não passava de sonho completamente imaterial. Aliás, sonhos e almejares [existe?] muito materiais são pouco significativos, prefiro o que é mais subjetivo e, portanto, fornece mais material.

Dando sequência, não havia mais que no desejo a tão sonhada fluência. De fato montava a moto como se monta um cavalo; mas o bicho era chucro e teimoso, e teimava com a direita, o tinhoso. Cada vez que a montava, tombava. Nem marcha conseguia engatar. O pé esquerdo enganchava na haste, enquanto o direito com muita força nos mantinha em pé. Ia afrouxando os dedos da mão esquerda, torcendo para trás o punho direito, torcendo que para frente nós fôssemos – e direito.

Assim que começava a mover, tentando trocar de inércia [do repouso para o movimento], algo muito mais forte que eu torcia o guidão para a direita, torcendo para que eu caísse. E dava certo, caí muitas vezes.

Em algumas outras, consegui até andar por algum tempo. Não consegui desenvolver grandes velocidades, nem sentir uma ventania intensa no rosto, mas cheguei a andar uma avenida. De qualquer modo, o final era sempre o mesmo, uma inevitável queda para a direita. Sustenido para quem vai.

Isso deve se repetir por umas 13 vezes, isso mesmo, cincomaisoito, treze. Três mais um, quatro. Quatro = número de rodas de um automóvel, que não cai assim, do nada. Como já diria um José, “não tem como dar certo – uma coisa que não é capaz de parar em pé sozinha, uma hora cai”. Sábias palavras, e olha que já citei gente que se mantém sábia através dos séculos...

Bom, trêsmaisum, quatro. Ótima deixa para trocar a motocicleta por um carro, já que motivos as quedas já eram desde a primeira. É um bom carro, esse meu. Além de quatro rodas, é quatro por quatro. Alto e não muito grande e com boas alças para carregar nas costas.

Saio dirigindo por aqui, por ali, chego acolá.

As quedas de moto são coisa do passado. Estou de pé no alto de uma inclinada e pedregosa descida. Tem uma queda d’água ao longe. Encaixo a mochila-carro nos ombros e é tão confortável, tão surpreendentemente leve e anatômica. Começo a descer a parte menos inclinada passo a passo em ritmo de caminhada acelerada.

Me acompanha de repente uma alongada mulher. Tem rosto e voz familiares, e jeito de moça de família. A conversa não se alonga muito antes de me desafiar. A observo bem nos olhos e reparo nos cílios alongados a rímel e curvex, bonitos na exata medida antes de se tornar algo de Emília de Monteiro Lobato. São o limiar, beleza limítrofe. E olha que esses olhos nem vêm ao caso, olha que esses olhos nem vêem o acaso.

Os olhos que me fixam, mas de entre dentes soa o desafio. Sem descolar os lábios, a alongada mulher me faz muito sentido. Sem nem olhar, sei que a conheço mesmo que não a reconheça, talvez a conheça, quem sabe não seja da vida real. Sem descolar os lábios, a mulher me diz que eu não deveria encarar a descida sozinho. Nem acompanhado. Muito menos com o carro nas costas.

Respondo que o carro é confortável, e que agradeço a preocupação, mas não se preocupe, estou bem. A mulher não desiste. A mulher não resiste à tentação de mudar de atitude. De preocupada a desafiadora em um piscar de cílios e nenhuma abertura da boca: “duvido que você desça, é íngreme demais pra você, não vai conseguir, pode desistir agora ou depois, mas será antes de ser homem o suficiente para conseguir”.

Consulto meu carro, que tem sempre sábias palavras que se dirigem a mim no automático. Ele é a voz oriental da sabedoria e da razão, e me lembra que não é necessário ceder a todo desafio para provar que é capaz; e aliás, me lembra que negá-los talvez seja para essa tarefa mais eficaz, e que isso ou aquilo é adulto, mas nem sempre é assim que se faz. Me diz que tudo isso, no entanto, é clichê, e clichê já é um pouco demais. Me lembra que se for por mim mesmo, não é o desafio que me apraz.

Cedo às suas palavras, e prometo a mim mesmo que vou descer, além do que, prometo que não tem nada a ver com a insolência e intempestividade daquela mulher. Ponho meus pés a descer, direito esquerdo direito esquerdo. O barulhinho das pedras arredondadas friccionando-se umas contras as outras é aveludado o suficiente para mostrar que têm pouca aspereza, e portanto são terreno fértil para os deslizes.

A descida se torna subitamente mais íngreme, algo próximo a 90 graus. Durante todo o trajeto, a mulher me acompanha. Enquanto a descida era fácil, ficou calada; quando se acentuou, tirou os pés do chão, claro, e passou a flutuar ao meu lado com asas negras de anjo torto, desses que não caem do céu e nem precisam. Ela tem na mão esquerda uma prancheta, na mão direita uma caneta com a qual marca com um X cada uma das opções que se enquadram na minha personalidade.

O tom de voz da mulher é cruel, ou se não é, a secura e falta de rodeios a faz soar assim. A descida é cruel e suo muito mais de nervoso que de esforço físico. Ela lê ainda sem mover os lábios, mas em voz alta, cada uma das alternativas que assinala:

[ X ] Neurose Obsessiva Compulsiva
[ X ] Depressão
[ X ] Déficit de Atenção
[ X ] Transtorno Bipolar
[ X ] Síndrome da Personalidade Limítrofe
[ X ] Alcoolismo
[ X ] Falta de vergonha na cara
[ X ] Stress não justificado
[ X ] Egocentrismo
[ X ] Baixa auto-estima
[ X ] Outros

A lista completa, não lembro, e nem se estavam todos esses presentes. Mas você, que não é idiota nem nada [no bom sentido], já entendeu o tom. E preciso dizer, a cada assinalada, ela fechava lentamente os cílios de boneca de pano, e então os abria lentamente olhando para mim. Novamente os fechava, e então ao abrir fitava o papel. Vez após vez, calmamente tentando me irritar com uma crueldade ímpar na voz que saía daquela boca fechada como se fora ventriloquista.

Tento não dar ouvidos e desviar o foco de toda minha atenção, tento dar de ombros. Continuo a difícil descida tentando não ouvir aquilo que, se acredito e assumo ou não, não quero pensar.

Detalhar cada movimento das mãos ou dos pés faz-se desnecessário face à movimentação muito mais intensa e confusa e importante e imperfeitamente precisa que minhas conexões e associações psicológicas fazem. Bloquear? Ouvir de desconsiderar? Desistir? Reclamar? Seguir em frente? Seguir abaixo, mas que caminho difícil e como é longe esse ponto lá embaixo.

Passo a passo, passo boas horas, no mau sentido, descendo. Dói, cansa, machuca o corpo e a alma. Quando penso que não dá mais pra descer, rompo a regra de nunca olhar para baixo e vejo que ainda dá e é preciso descer muito mais para chegar na parte mais baixa, para conseguir colocar os pés no chão. Romper regras é o que nos tira do desconfortável conforto. A zona de conforto é onde tudo pode ficar tão confortável que se torna desesperadamente confortável. Confortável e tudo que não está essa história para a primeira pessoa.

[Eu, primeira pessoa do singular = “euzinho sou o primeiríssimo ser humano do que é diferenciado”. Que puta necessidade de autoafirmação essa expressão]

Fato é que confortável ou não, a descida um dia acaba. E o bom de chegar lá embaixo é que do chão não passa, e metaforicamente quando você chega no ponto mais baixo possível, pode relaxar – de tão baixo, desse referencial as coisas só podem melhorar. Se forem inteligentes, as pessoas que atingem o nível mais baixo, nesse momento, se forem também coerentes, só podem ser as mais otimistas.

Cheguei lá embaixo. Chegamos. Olho para a mulher, que está diferente. Não tem mais asas e sorri. Sorri de volta. Ainda estou voltado para a parede que acabei de descer. Ela dessa vez abre a boca:

- Por que você não se vira?

- Por que você não se cala? Tudo que fez até agora foi me jogar pra baixo, jogar coisas e palavras feias na minha cara sem a menor preocupação e cuidado.

- Você aguenta. Se vira.

- Que amigável, meu deus [deus?].

- Quero dizer, vire-se. O que tem a perder? Se não gostar do que vir, vou embora.

- E se eu não quiser ver?

- Tanto pior.

Ela me pegou, pouco caso me mata. Viro e realmente me surpreendo, e olha que ela nem precisou dizer “duvido”. Não me arrependo nem um pouco do que vejo, é um deleite. Estou em um resort tropical, a temperatura é ideal. Meus pés já estão enfiados na água de uma piscina infinita. Vejo vultos tranquilos ao longe, completamente indefiníveis. É a água mais plácida que jamais vi.

A mulher volta a abrir a boca, seu olhar beira o maternal e me faz respirar diferente:

- Não se preocupe com as coisas que lhe falei, nem como o fiz. Nada daquilo importa mais. A única razão de todas aquelas palavras era te motivar, te distrair de um caminho tão árduo, tão rude que euzinha, a primeiríssima ser humana do que é diferenciado, cheguei a duvidar da sua capacidade de prosseguir. Duvidei tanto, mas tanto, que a única forma de convencê-lo a continuar seria dizendo a verdade, dizendo que não acreditava que pudesse conseguir. Você passou pelo pior, e chegou no melhor. Mas não deixou de ser quem era, deixou? Não. Apenas o que não importava ficou para trás. E quando temeu olhar para trás, mas finalmente cedeu, foi isso que avistou. Não te apraz?

Muito, que não queria acordar. Olhei mais uma vez para ela e vi quem era. Alguém familiar, alguém que faz sentido ao final, afinal não acontecera nada, absolutamente nada acontecera após isso.

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