quarta-feira, 26 de outubro de 2011

PEÇA À TERCEIRA PESSOA – UM MONÓLOGO EXTRAPSICOLÓGICO

[Uma pesada cortina de veludo alemão vermelho guarda o palco dos olhares do público. O clima de ansiedade e animosidade é necessário, e garantido por atrasos sistematicamente maiores a cada apresentação, até que se descubra a progressão utilizada, quando então deve-se pensar em outra forma de irritar a plateia. Ouvimos os passos secos de uma bota francesa de cromo alemão e sola de madeira, que cessam ao atingir a precisa metade do palco. Um spot de luz frontal acende ruidosamente sobre o orador, que reage abrupta, mas comedidamente até se adaptar à luz nos olhos e começar a falar na boca de cena, entre a cortina e o precipício que separa o ator da nervosa audiência.]

- Alunos e alunas aplicados/as sempre às exatas, até mesmo às biológicas, mas nunca às humanas. Isso tudo pode ser chamado démodé ou outro termo na nova escola, mas a história é da velha e os termos são esses. A velha, conhecida obsessão matemática aplicada à gramática.

O orador caminha pela boca de cena.

- Assim como menos com menos dá mais, mais com mais dá mais; apenas menos com mais – ou vice-versa – dá menos. Portanto, depois de aplicada essa micropílula de sabedoria popular, a pergunta de um milhão de dólares seria [Antes de selar o acordo, diga – é capaz de honrá-lo? Bem, meu rapaz, para sua sorte ou azar, não importa, pois não há tempo para a resposta!], retomando, a pergunta de um milhão de dólares seria: como não existem no mundo mais números positivos que negativos? Extende-se ao infinito e além, até onde ecoar, a questão.

O final dessa frase ecoa e reverbera gravemente. Uma lousa desce do teto pendurada por cordas.

- Ao passo que chegamos em três parágrafos ao cerne da questão, fato que não deve ser outra coisa que não coincidência, algo assim para apenas afirmar pela negação do contrário*. Não obstante, se não vamos aqui deixar à deriva os números, que a tese surja de acordo com o titulo. Pois bem, lá vai ou lá vem: a terceira pessoa do singular está sempre no extremo oposto do espectro de onda referente aos pronomes relativos quando comparada à terceira pessoa do plural; para cima ou para baixo e qual, isso depende de onde se firma o tripé do observador, variando ele e eles como inclusivos ou exclusivos, invariavelmente, e de certa forma até concomitante e inevitavelmente, incluindo nessa oposição a valência de cada um dos termos.

A seguinte frase é escrita pelo orador no quadro: 7r35 3’ m35m0 um núm3r0 m4’g1c0, s3 3ss3 73rm0 pod3 d3 f4t0 3x1571r.

[*Ideia para outra estória: um jovem rebelde, adolescente filho de pais bastante inteligentes, que decide se tatuar às escondidas pelo simples prazer do perigo, uma vez que seus pais são também bastante liberais, e escolhe um dizer bastante categórico e vermelho para pintar de preto a pele com “eu não me afirmo pela negação do contrário”. A trama se desenrola na frustração do pai ao não conseguir nenhuma de duas coisas: 1) compreender a razão do ocorrido; e 2) fazer com que o filho compreenda onde está a verdadeira inaceitabilidade do evento. Rever O Bebê de Rosemary. A criança pode se chamar Edgard, pô!]

- Sábio ou apenas paciente você que até aqui chegou, saiba que a primeira fase deste vestibular já passou, e servia apenas para despistar os caça-tesouros, descartar os idiotas e filtrar os verdadeiramente dignos. Se chegou até aqui, parabéns! Um Zé-Ninguém lhe confere o titulo de Doutor de Absolutamente Porra Nenhuma. Em reconhecimento ao empenho empregado, a verdadeira estória a seguir.

[O foco de luz se apaga ainda com o orador em riste, que veste regata preta cotelê corte italiano, boné trucker, um relógio de bolso dourado, calça jeans rasgada e a bota. Óculos de hastes douradas penduram-se sobre o nariz, equilibrando-se. Abrem-se as pesadas cortinas vermelhas de veludo alemão. Aura de Lynch no clube. Silêncio. Não há banda. Início Primeiro Ato.]

O orador se movimenta para trás. Cenário simples, minimalista, tábuas corridas e um banquinho de madeira rosa com três pés no exato centro do palco. Magicamente, se veste de outra maneira: calça branca feminina de cintura baixa, camisa xadrez em tons predominantes de verde e um velho All Star cheio de potencial explorado, cor de vinho seco, um Malbec bem específico. O spot não vem mais de frente, só que de cima, fazendo o orador praticamente não ser mais ele mesmo, mas seu próprio nariz. Sua barba cresceu. Acima do banquinho há um conjunto de cordas grossas de sisal, perfeitamente imóveis e perfiladas paralelamente à boca de cena, na mesma profundidade do baquinho. O orador não senta, mas se empoleira sobre ele, equilibrando-se com apenas um dos pés, o esquerdo. “Vai, Carlos! ser gauche na vida”.

- Meu caro espectador, o ingresso é caro, mas nem por isso vou deixar de cobrar de você. Afinal, foi você quem escolheu estar aqui; caso não seja seu caso, tanto pior e ainda mais se foi você quem pagou. Mas a vida de artista não é fácil, mesmo sem ser você há de convir se apenas um pouco pensar. É fácil não ter o que fazer? É fácil buscar uma voz para se expressar, mesmo que não saia de você e no entanto represente tudo que você lá dentro diz a si mesmo sem conseguir escutar, só sentir? Você entrou aqui trazido por suas próprias pernas, o que cria a chamada demanda nas suas regras de oferta e preço, portanto agora quem está no controle sou eu. Como em combates aéreos clássicos da Primeira Grande Guerra, pilotei meu avião até mais alto acima de você, eu sob ataque, até que enquanto me mantinha ainda firme em subida, você se curvou e cedeu. Nesse momento eu inverti o loop, e agora seu motor está desligado e você, em queda livre. Meu caro espectador, o ingresso é caro mas vou exigir de você. Saia da zona de conforto onde toda sua falta de atitude é muito bem justificada pelos gastos em dinheiro. Você compra o mundo para não fazer nada? Pois bem, tranquem as portas! Só sairão daqui depois de pensar e refletir muito!

O orador salta suavemente enquanto termina a frase, agarra precisa e firmemente uma das cordas e aterrissa no chão com o pé esquerdo. Luzes brancas e fortes acendem ruidosamente contra a plateia, ao mesmo tempo que uma cortina de veludo cotelê no fundo do palco despenca até o solo, revelando por trás de si um gigantesco espelho de moldura rococó. O espelho reflete absolutamente todas as pessoas, de todos os ângulos. O barulho das portas ao fundo da plateia sendo trancadas beira o claustrofóbico.

- Meu caro espectador, o ingresso é caro, então peço-lhe que confie no que vou lhe confiar em segredo, sob pena de, em se deixando de ser segredo, transformar-se em traição. Primeiro de tudo, que tal a sensação da luz forte lhe cegando os olhos inadvertidamente? Quando foi comigo ele se divertiu!

Orador aponta para um tipo na plateia e pergunta, olhando o tipo nos olhos enquanto aponta para outras pessoas e passeia pelo corredor de acesso às poltronas:

- E eles, riram de mim? E agora, vai dedurá-los, retratar-se comigo ou juntar-se a eles? Meu caro espectador, o ingresso é caro, e a pergunta é retórica. A porta está trancada e você não pode evitar de refletir. E todos podem ver o que reflete. Assim, vestidos e refletidos, ternos e vestidos são tanto quanto nada. Estão todos nus perante os demais, despidos, desprovidos de proteção, enquanto o único vestido sou eu!

Em um gesto seco, rápido e preciso como uma navalha, puxa sua roupa violentamente para frente. Ela cai, o orador está nu.

- Meu caro espectador, o ingresso é caro, mas você não veio aqui para menos do que vou impor. Exijo sua abstração, exijo total soltura das suas funções psicológicas, exijo que se entregue. Exijo atenção. Ouça com atenção em vez de apenas escutar. Em vez de ficar só olhando, me veja. Solte a direção de arte da história cujo roteiro sou eu quem vai contar. Meu espectador ilustre, não precisa criar, ilustre. Eu exijo sua abstração. Não tem cenário que não possa existir, simplesmente porque aqui não há nenhum. Aprendam a se sentir confortáveis com toda essa exposição, eu lhes garanto, se todos podem se olhar, ninguém vai lembrar que se viu.

As luzes diminuem. O orador retorna ao palco e puxa outra corda. Jatos de água caem do alto formando palavras:

VOCÊ ESTÁ
PRESTANDO
ATENÇÃO?

A hidrotecnia dura cerca de 13 segundos, tempo suficiente para o orador se vestir com uma calça preta de zíper prata e malha-de-lã teia-de-aranha cor-de-abelha. Caminha descalço com um par de coturnos pretos nas mãos em direção ao banquinho, sobre o qual senta. Tira de dentro do coturno esquerdo um pé de meia preta e começa a vestir no pé esquerdo lentamente, olhando para o nada, como que refletindo sobre as próximas palavras. Pega a meia direita, faz que não com a cabeça, larga a meia e calça o coturno esquerdo enquanto começa a falar:

- Caro espectador, o ingresso é caro, e por isso exijo sua abstração. Agentes secretos se infiltram na vida de uma mulher. São dois. Um deles já está infiltrado dentro da vida do outro, ou seja, dois níveis pra quem sabe da Origem. O primeiro agente se infiltra como agente mesmo na vida do segundo. Ambos se infiltram na vida da mulher: o mais belo como faxineiro do prédio, o mais rico como pretendente.

A essa altura, o orador deixa de lado o pé direito do coturno e põe-se a manquitolar de um lado para o outro do palco rápida e freneticamente.

- O pretendente e a mulher estão em um encontro na casa dela quando aparece, tarde da noite, o bonitão da limpeza. O que ambos querem? Acima disso, quem são eles? Quem é ela? Quem são eles pra ela? Quem está encenando?Já pedi antes que confiassem em mim, e afinal não têm escolha. Vou precisar que se mantenham calmos, quietos e extremamente concentrados em 3, 2, 1...

[Todas as luzes se apagam, novamente com ruído. Passam 3 minutos assim, até que o spot vertical se acenda novamente sobre o banquinho. Agora o orador está sentado com a cabeça apoiada sobre o punho, mimeticamente análogo ao famoso pensador de bronze. Calça apenas o coturno direito, sem calça ou nada mais. Cabelo e barba raspados bem rente. Início Segundo Ato.]

A voz do orador soa, mas sua cabeça e maxilar estão imóveis.

- A soma das unidades desse parágrafo é 13, não perca seu tempo contando, já adianto que não adianta. Prostitutas invadem um veículo e obrigam a dirigir em direção a uma tal mansão. Quando um semáforo fecha, uma necessidade incontrolável de estacionar. Uma irmã surge e conduz sorridente para dentro de uma casa imensa, um loft gigante que poderia ser uma fábrica de automóveis. Primeiro uma pergunta sobre um piso de tábuas corridas bem lindas e longas, que é belo e caro. Depois ao videogame ultrarrealista com um jogo de boxe controlado por sensores de movimento. Ao primeiro soco recebido, prazer. Ao primeiro proferido e acertado, um buraco no estômago. Está tudo bem? Não! Corram daqui, busquem aqueles que se importam, busquem aqueles com quem se importam, vão, busquem o seu amor, já é hora. Vão, ou será tarde demais e será tudo em vão, vão logo antes que as oportunidades se fechem e não sobre um vão, vão! Peçam à terceira pessoa para quem contarem que venham até aqui. Peçam à terceira pessoa que vejam essa peça!

Surge magicamente um Kadet Turim automático 1990 sobre o palco, em cujo banco do motorista o orador já se encontra. A frente do carro está voltada para a esquerda do palco. O orador encerra:

- 1990, e ainda ele ainda está fazendo um grande trabalho!

Pisa fundo no acelerador, mas o câmbio está no N, de forma que só aumenta o ronco do motor. Uma câmera bem sobre o câmbio capta a imagem da alavanca, que é projetada sobre uma tela que ocupa o lugar onde ficava o gigantesco espelho de antes.

- São de 1990, e eles já estão fazendo um grande trabalho.

Na projeção, percebe-se a mão do orador puxando a alavanca até o D. Ele faz um sinal da cruz todo errado e ora:

- Affe, Maria, chega de graça. O senhor é tão lindo! Meu caro espectador, o ingresso é caro e você já perdeu tempo demais!

Nisso, acelera com força, os pneus cantam e o automóvel se move velozmente para a coxia, deixando para trás um rastro de fumaça. Em 13 segundos, ouve-se um violento barulho de acidente, todas as luzes se acendem, as portas do fundo são abertas e o orador está no saguão para receber os cumprimentos.

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