domingo, 23 de outubro de 2011

DE CABEÇA NA METAMORFOSE

Uma banheira. Um cobertor. Uma penteadeira. Um vidro de lustrapatas. Um livro contábil. Um par de sandálias. Uma canga. Um binóculo. Duas torneiras de bronze.

Um singelo pássaro a observar.

Acordo como se fosse uma vítima do sádico sanguinolento que fala por intermédio de um terrível boneco ventríloquo e um gravador, mas sem a parte do “olá, quero jogar um jogo”. Mas pelo nome do filme, faz muito sentido tentar organizar as peças desse quebra-cabeças. A trilha perfeita toca no ar, jamais deixaria passarem despercebidos Mick e os slides de Keith. Mas cansei de esperar pacientemente.

A banheira fica no canto de um banheiro claro e limpo, e poderia ser aquela descartada na reforma, se não fosse outra. Apesar de que olhando por dentro, são bem parecidas. No entanto, pelos perfeitos alinhamentos horizontal e vertical em relação ao lustre no teto, percebo que não está no canto, mas no centro. Pela mobilidade, deve se tratar de uma banheira vitoriana.

Até agora só olhei para as coisas e o pássaro, sem olhar para mim. Preciso encontrar meu binóculo. É incrível como nos sonhos a realidade pode ou não se repetir a seu bel prazer; nesse caso se repetiu, foi como quando procuramos a chave que seguramos com as próprias mãos – o binóculos estava já em frente aos meus olhos durante todo o tempo.

Desviei das lentes e me dei conta que tudo parecia como o mundo 4. Maldição, estive olhando pelas lentes do binóculo ao contrário, e em vez de ver as coisas maiores e mais próximas, as via menores e mais distantes. A banheira era imensa, assim como todo o resto. Até o pássaro, apesar de não ser monstruoso, parecia agora bem maior que esperaria. Parece do meu tamanho!

Começo a andar buscando sair da banheira. Assim que começo a subir, começo a descer. Começo a subir, começo a descer. “Maldição”, penso, “esse é um daqueles sonhos de impotência”. A sensação de escorregar pelas lisas paredes da banheira não é ruim. No entanto, depois de umas treze tentativas perde a graça.

“O vidro de lustrapatas”, exclamo. Mas é claro, quem quer que tenha me jogado nesse mundo gigante, deve ter lustrado minhas patas enquanto dormia, evitando assim que saísse.

A passarinha mia e se lambe do alto, empoleirada na borda da banheira. Ela mia perguntando se não teria eu me dado conta de que se tenho patas, humano não sou. Ela diz ainda que nos parecemos mais do que posso imaginar. Seria eu como ela? Seria ela como eu? Espelho, espelho meu...

- Levante os braços.

- Você está armada?

- Vamos lá, pareço estar?

- Não, mas gostaria de ouvir de você.

- Levante e digo o que quiser ouvir.

Levantei os braços que eram asas, bati e voei para fora da banheira aliviado. Sem dizer palavra, nos direcionamos cada um para umas das torneiras de bronze reluzentes, agarramos suas antigas e belas hastes com as patas lustradas, fizemos força e dançamos tão graciosos como pássaros devem parecer.

Tudo nesses momentos é mais rápido e menos racional e menos psicológico, por uma de duas razões, ou um mix de ambas. Pode ser porque animais sabem instintivamente o que devem fazer, ou apenas porque tinha que ser. Não sei o que pensar, só o que dizer - ou vice-versa?

As torneiras começam a encher de água o banheiro, e por isso a banheira estava deslocada. Estivesse no canto, todo o líquido cairia em seu interior, e posteriormente pelo ralo, visto que não tenho uma tampa. E por isso a banheira não era a da reforma, senão seria fixa. O universo faz sentido, afinal!

O livro contábil é o primeiro a se encharcar. A sensação é boa, quem quer saber de conta é gente, e hoje somos pássaros livres para voar. A contabilidade é assunto para outro andar de outro prédio, ares rarefeitos que não quero respirar. Não quero ossos pneumáticos para me preocupar com esse tipo de pequenice.

Voamos para a penteadeira para dar um último tapa no visual. Somos bem parecidos. Pelo tom de vermelho, somos dois Tiê-sangue. Isso, Watson, pode nos levar a mais uma inferência, a de que estamos na costa sul do litoral norte, se considerar o piso de madeira e o silêncio faz ainda mais sentido.

Pegamos com as patas e despejamos dentro da banheira as sandálias e a canga. Enrolamos rapidamente o cobertor nas patas também de bronze da banheira, evitando que seu deslizar risque o piso. A água já está a ponto de nos fazer mover.

Assim que a banheira se transforma na embarcação rumo ao ansiado desconhecido, empoleiramos na sua borda e descemos escadas e corredeiras sem muito esforço, uma vez que a água é tranquila tanto quanto límpida.

Após não muito, chegamos à entrada de onde se serve o melhor Filet au Poivre pé na areia de que se tem notícia, saltamos voando para a grande grade de madeira em sua varanda. Peça que o interior seja vermelho como nossos peitos e a satisfação é garantida.

Mas ainda não é hora de regozijar, vamos até o fim. Seguindo o fluxo da água, nossas patas se transformam em pés e vamos crescendo à medida que a fórmula areia + água nos atinge. As penas não caem, mas desaparecem, e me vejo quase humano novamente. Ando uma rua até que toda a metamorfose esteja completa, desembocando em um píer desgastado na medida certa, dando acesso a uma praia completamente vazia, onde só descansam o sol, a areia, as ondas, uma canga e um par de sandálias.

Tenho pela primeira vez a real sensação de que um desagradável aniversário está chegando. Aniversários são a maldição da existência. Todo mundo faz. Todo mundo. Todo ano. Todo mundo que eu conheço faz. As únicas pessoas que conheço que pararam de fazer aniversário, estão mortas. Então para quê os parabéns? Acho que preferia um dia depois, o que me incomoda é o fato de passar o ano todo nessa expectativa.

Afinal, jamais pude dizer “bem, quanto a isso tô tranquilo, pelo menos aniversário esse ano eu já fiz”. Não, eu sempre tenho que deixar tudo para a última hora.

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