sábado, 22 de outubro de 2011

CARTA PARA JULIÈTTE

CURIOSO

Oi.

Em mais uma dessas minhas frequentes idas à Argentina resolvi caminhar do Aeroparque até o hotel. Pé ante pé nas calçadas, me dei conta de que havia algo de diferente no ar. E quando na capital federal, é de se esperar que sejam bons ares. Ahn?! ;)

Comecei a perceber quando em uma curva comecei a descer. Você já esteve lá, parece a curva à direita de quem desce a Brigadeiro e vai para a Vinte e Três, bem ali embaixo da varanda do Lions Club, saca? Então, é íngreme, e essa cidade deveria ser plana, não? E além disso, Luiz Antônio tem alguma relevância para esse povo? Creio que não. Curioso...

Percebi que o mesmo tipo de corrente do centro de São Paulo afunilava a calçada, de maneira que pé ante pé virou gente ante gente, e não havia como ultrapassar. Como sempre, tentei chegar um dia antes para não me importar com esse tipo de problema. Para deixar o tempo passar, resolvi então entrar no restaurante onde como sempre.

Mas antes de entrar ainda haviam alguns metros ao longo dos quais mais coisas curiosas decidiram acontecer.

ESTOU MUITO CURIOSO

Acho que você, aqui, também estaria. Pela rua não passavam carros, mas uma infinidade de bicicletas velozes e reluzentes. Todos olhavam para os ciclistas e os aplaudiam. Percebi que o aperto da calçada era para evitar que uma pessoa ficasse na frente da outra, impedindo a visão a que todos devem ter direito. É tão bonito vê-los passar, e se não fosse a Tour de France que estavivesse acontecendo, teria certeza de que era o grupo de corrida que vejo pela varanda passar todos os domingos a quatro andares de distância.

É uma verdadeira festa, preciso admitir. Gostei de fazer parte, mas estou muito curioso com qual fato político teria feito com que a Tour de France se mudasse para essa Buenos Aires travestida de São Paulo. Seria isso fruto da já não tão falada Globalização, ou Mundialização – termo mais humano preferido pelos franceses – latinos – em oposição aos mais técnicos saxônicos / anglicanos? Ou será que ela é apenas mais longa que imaginei e passou sempre por aqui? O que acha?

Assim que todos os participantes passaram, voltei o olhar para a direita, que era a direção do restaurante para onde ia. Avistei carregadores de piano carregando um piano velho e lindo, celestial. As marcas de uso em instrumentos musicais são como mãos e cantos de olhos envelhecidos – alguns vêem como padrão de depreciação, enquanto outros [grupo do qual faço parte] consideram aquilo a beleza, a história de cada instrumento que deixou de ser um pedaço de madeira para ser uma alma. As marcas são a materialização do potencial, afinal um piano não é nada. Um piano é a música que sai dele. O que acha?

Os carregadores do piano parecem músicos experientes, dado o cuidado realmente de enfermeiros que têm com o instrumento. Uma mulher que emana azul é a próxima da fila na calçada. Quando chegaram os três à porta do restaurante, o piano foi colocado no chão. Eu, que distava ainda umas 15 pessoas, não me irritei como elas. Creio que tivessem hora para chegar, enquanto eu apenas vagava.

A mulher que emanava azul colocou seus dedos de anéis sobre as teclas pretas, e tocou uma melodia linda e melancólica quase que praticamente toda sobre sustenidos e bemóis. Reconheci a canção, e talvez você um dia a reconheça se ouvir pela segunda vez ou décima terceira. Não é famosa ainda, nem nunca será. Enquanto tocava, as pessoas na minha frente deixaram baixar a guarda e pararam de buzinar para aproveitar o momento peculiar e doce.

Assim que terminou, a mulher entrou no restaurante. As quinze pessoas andaram até que eu pudesse alcançar a maçaneta e entrar também. A mulher era você, e o restaurante era um brechó. Você não pareceu me reconhecer, no entanto não me ignorou, pelo contrário. Me ofereceu com um gesto o sofá de madeira escura e veludo vermelho defronte ao provador. Era um brechó de muito bom gosto, de muito estilo, uma versão melhorada do À La Garçonne, tão melhorada quanto um cartão de crédito normal que da noite para o dia adquire um novo limite de um bilhão e sessenta milhões de Reais. Ou de Euros, falando em França. Nunca de pesos, apesar da Argentina.

Desfilou por entre as araras, perguntou “que roupa eu ponho”, escolheu algumas peças, se encaminhou ao provador com cortina de veludo alemão combinando com o sofá, afastou de um lado apenas o suficiente para entrar, virou-se para mim, piscou com cílios de boneca de pano, fechou e de dentro disse “se ficar aí sentado, adeus; caso contrário, nos vemos”.

SOU MUITO CURIOSO

Você sabe muito bem disso. Que boa charada! Mesmo antes de decifrar, já sei que adeus não me apraz, portanto levanto e retomo em direção ao hotel. Sou muito curioso para não pensar nisso durante todo o caminho, o que faz o percurso parecer muito mais curto do que na realidade de um sonho seria.

O hotel era pequeno e elegante, tinha um quê de flat. Na extensão do lobby, um piano bar. Quem estava lá? Quem? Sim, ele, o piano velho. Uma dona Josefina escrevia em um envelope e fincou a caneta tinteiro na madeira do velho piano com realmente mais força do que aqueles velhos braços pareciam ter. Uma dona Lydia riu desgraçadamente como se o som viesse do além. Fiz uma digressão rápida ao perceber o estado esburacado do piano. Diferente das costas de uma guitarra com forma de cintura de mulher, em cujo verso a fivela de caveira do cinto esfrega com vigor, desgastando a pintura de uma maneira sexy e definitiva, esse piano parece maltratado pelas razões erradas. Ele está assim pela quantidade de cheques e guias de cartões que devem ter sido assinadas naquele lugar, e até mesmo as comandas dos hóspedes solitários que passaram noites ali a se embriagar. Pobre piano, suas marcas de tempo não denotam um potencial atingido, mas o contrário.

Sou muito curioso e decidi perguntar a ele próprio, o piano, como se sentia em relação a isso. Ele me respondeu que apenas uma vez fora tocado bela mas brevemente, então não tinha certeza se foi feito mesmo para isso, ou se havia cumprido um bom papel como alvo da ira de canetas descontroladas e autoritárias, pois estas regem as transações monetárias que mantêm tudo ali funcionando. Me entristeci e olhei para ele com muito pesar. Disse que esse fardo é pesado, muito mais pesado que ele, mesmo apesar de um piano não ser leve. Mas seu potencial é leve e puro e pleno e belo. Pedi que não desistisse, que um piano não é um piano, mas seu potencial. Ele com o olhar consentiu, mas disse que esse fardo era dele, que não me preocupasse e subisse direto ao meu quarto. O que acha?

Subi apenas um lance de escada e logo abri a porta, e o fato daqui por diante você já sabe, mas não como eu vi. Todo o chão do meu quarto era coberto por uma grama verde recém aparada. O céu era azul e cinza, e emanava um tom de bronze celestial. Você falava ao telefone e sorriu ao me ver, fez um gesto com a mão e apontou o balcão da cozinha. Havia nele um papel e uma caneta fincada. Fui em direção a ele e percebi que era o piano. Sentei e reproduzi nas teclas pretas a melodia de antes. Fiquei feliz ao pensar que havia desvendado toda a charada, mas quando me virei, você não estava mais lá, só a grama e o cheiro no ar. Não era mal, no entanto.

Resolvi então olhar no papel, havia algo escrito com a minha letra. Uma conjugação do verbo ligar no tempo presente, acrescido de uns detalhes.

Quem liga?
Eu ligo
Tu ligas
Ele liga
Nós ligamos
Vós ligais
Eles ligam
Quem não liga?

Eu sou muito curioso demais para não me concentrar na resolução dessa charada, mas acabei acordando. O que acha?

Um comentário:

  1. Seus textos estão muito bons, cada vez melhores.
    Amo lê-los e mais ainda ouvi-los.
    Bjo

    http://ibelieveinparties.blogspot.com

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