quarta-feira, 24 de março de 2010

BODE COMEÇA COM B DE BRAINSTORM

Os quatro tomavam banho nesse aquecido brainstorm. Uma tempestade de ideias. Tão forte e tão frutífera que o sumo das laranjas encharcava o recém construído e lixado e raspado e pintado – no entanto ainda não impermeabilizado – piso do banheiro. Nunca fui de grandes frescuras, mas estragar o trabalho de um dia inteiro feito por trabalhadores braçais dedicados não era meu ideal de respeito.

Olhem aqui, seus criativos, quer dizer que a nova e brilhante ideia de vocês é fazer brainstorm sem box nem cortina, desnudos, como se isso os colocasse em condição de igualdade frente aos demais, todos iguais? Pois bem, façam o que quiserem, contanto que mantenham essa maldita chuva e perversidão longe desse piso.

Me parecia que mesmo tendo oito boxes à disposição, com lindas portas de vidro, preferiam a anarquia e a algazarra de tanto deixar as portas abertas quanto não usar as benditas cortinas plásticas.

Percebi em um canto que cada um havia trazido a sua cortina, mas queriam utilizá-las para manterem-se secos acima de tudo. Enervei-me, e não pude conter o ímpeto de esbravejar como um professor colegial que ensina o mais elementar a uma mente que se julga brilhante e saciada de todo o conhecimento de que precisa. Mentes arrogantes a dos criativos e dos adolescentes... Ensinei que a ideia de um banho é molhar a si mesmo, e manter o resto da agência ou casa ou vestiário secos. Por isso as portas de vidro. Em inglês, “keep it to yourself”.

Bem, comecei a desenrolar as cortinas a fim de pendurá-las corretamente e preservar o pouco que sobrevivera aos respingos de piadas sem graça. Os adolescentes – sim, mentalidades adolescentes – assustavam a cada gesto. Uma mocinha entrou pela porta extremamente doente, trêmula, cambaleante, quando um deles foi em sua direção ampará-la. Eu, que não era médico, imaginei que aquilo só poderia ser fruto de muito exercício para as pernas seguidos por costelas de porco cobertas com cisticercos.

Voltei novamente para a tarefa de pendurar as cortinas e um dos malandrinhos se escorou pesadamente sobre meus ombros, do que reclamei sem piedade até perceber que ele estava mal das pernas. Não iria pendurar a toalha, não vendo aquele rapaz em tal situação.

Parecia mais um caso de exercício exagerado e alimentação descabida, mas nesse eu confiava o suficiente para acreditar que estava mal. Olhei pela janela e vi que nevava, o que explicava a tremedeira. Vesti-os um a um e mandei que tomassem um trem na estação com destino ao aeroporto, voltando imediatamente às suas casas. Isso feito, botei-me a ler um artigo que versava sobre as novas profissões de antigos criativos.

O excerto que mais me interessou foi sobre a quantidade deles que passou a cabeleireiro, afinal quantos deles deixam de ser absolutamente vaidosos com suas madeixas? Poucos, raros, nem mesmo os que abriram mão de utilizá-las. E no meio da leitura vejo que um desses jovens chegou aos trinta praticamente calvo, e isso o fez reduzir o risco de desenvolver câncer de próstata em 29%. Entendi que a cada ano que se passa perdendo cabelo até a data que se completa 30 é responsável por um acréscimo de 1% na sua chance de sobrevivência, por assim dizer. E o ilustre jovem que ilustrava esse neco de cultura era conhecido meu de algum tempo. Vi-o completar trinta ao mesmo tempo que perdia os fios.

Olhei pela janela e vi que era ele mesmo quem cortava cabelos dentro daquele gol onde criança nenhuma conseguia marcar, tendo em vista a altura da neve e o quanto eram pernas de pau vestindo aquelas botas de gelo e carneiro. Detive-me à sua imagem um instante, e percebi que era tanto cabeleireiro quanto goleiro, ao que concluí “largar a vida de criativo pode ser cansativo, é preciso muitas vezes fazer jornada dupla em trabalhos cansativos, é o preço que se paga para ser feliz”.

Olhei para minhas mãos com a intenção de arranjar uma ideia criativa para algo a fazer com elas, e dei conta que estavam pálidas e verdes. O grande mal de ser diretor de arte é que você nunca mais admira o mundo como é, mas como poderia ser feito na sua tela. Um diz “imagine uma pequena esfera dourada”, e você logo se pega de olhos fechados imaginando a textura, movimentos de câmera, posição da luz, se é 3D ou simulação... um saco, uma grande merda que o mantém afastado do nível de consciência avançado.

Mas que meus dedos estavam verdes é um fato, e meus olhos inchados como Rocky. O doente de toda a história sempre fui eu. Agora apodrecia sozinh depois de expulsar todos dos arredores, à exceção de uma tia que era mais como uma mãe e me vinha cuidar a cada dois dias.

Olhava no espelho e a cada minuto mais sangue e linfa se acumulavam no entorno do meu olho direito. Não doía, mas escorria bastante. Alimentava-me de coisas que não ousaria escrever, digamos que um tipo de carne tão proibido e tão podre que seria digno de visitas póstumas e depósitos de flores. Minha última unha de comida jazia sobre um cesto de lixo, local mais apropriado dentro de uma casa não haveria, e tinha a cor de uma unha esmagada pela porta de um carro.

A tia falava ao telefone com alguém quem só fazia exigir meu retorno não por compaixão ou por necessidade, mas por mesquinharia e demonstração de poder. Ela dizia que não saberia se suportaria – eu – a viagem, e que aguardaria ao meu lado por dias melhores e principalmente a chegada de um clima mais transponível, com a esperança que trouxesse de carona boas pessoas e um remedia que me curasse a alma, dado que o corpo apenas refletia o quanto ela adoecera.

Deitei sobre um casaco de peles e o tempo foi suficiente apenas para perceber que antes de abir os olhos definitivamente, a neve ainda caía forte lá fora, os gritos de gol permaneciam contidos e muita gente ficava careca.

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