segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A MORTE DA MENINA DOS OLHOS

A garota namorava um garoto, como muitas vezes acontece – mas não exclusivamente. Já se tem notícias e indícios e provas e testemunhas da existência casais diferenciados do supracitado. Isso se pode ver a olhos nus, mas dar-se-á preferência a ver os vistos vestidos. De minha parte, desde que não estejam desnudos, em nada me afeta. Já nus, quase invariavelmente me incomodam as presenças de casais com as distintas fórmulas, quais sejam:

- a já citada [garota + garoto] e sua variação [garoto + garota];
- [garoto + garoto]; e
- [garota + garota].

Bem, as elucubrações sobre o tipo de casais que se pode encontrar em baladas de ali e de acolá devem ceder espaço ao que acontecia na balada de aqui, dessa história. Um casal [garota + garoto] estava em uma típica balada paulistana, dessas onde os legalmente adultos têm cara de meninos[as] e fingem beber como a gente grande que não são; dessas de onde periculosos roqueiros fortemente armados com a indumentária poser voltam ao final das madrugadas para as casas de seus pais e mães, torcendo para que os adultos não estejam acordados.

A garota tem rosto familiar, uma mistura de ser humano com alguém que já passou por mim quando estava acordado - mas não vivo - e que em algum momento, para alguém, fez sentido existir. A boca desse rosto mexe enquanto os olhos de outro rosto – igualmente conhecido – observam atentos ou vidrados.

O rosto dos olhos é também feminino, assim como o corpo, que caminha agora em minha direção. Os olhos se destacam do rosto e parecem falar, mas a boca não se mexe. Enquanto a boca continua estática, uma mão busca em meu bolso a caneta, ao mesmo tempo que a outra saca de seu próprio bolso um papel. Sobre meu peito, logo abaixo de meu nariz de estátua, põe-se a escrever. Termina rapidamente e me entrega o papel e a caneta; seguro cada um com uma das mãos, e rapidamente leio com os olhos o que faz minha boca abrir:

Lembre-se sempre de mim, eu simplesmente gosto muito de te olhar.

A razão pela qual me sinto tão afetado a ponto de estar boquiaberto não se sabe, mas se nota este fato pelo de que decido ir-me embora. Volto-me para a escada, e a menina dos olhos desce seus três degraus antes que eu. Percebo que está desconcentrada, desequilibrada, parece louca. Não psicologicamente, mas drogada. Percebo tudo isso mas não dou conta do colar dela, que cai.

Há algo certamente incoerente na última sentença, uma vez que não haveria de poder relatar aquilo de que não me dera conta. A conta não fecha, e o que era pra ser apenas absurdo, agora ganha ares de ilógico – isso não, nunca fez parte do programa. Por isso, meu subconsciente trabalha em remediar a situação. Vamos aos fatos subsequentes.

A boca da outra garota, a garota da boca, fala agora comigo. As exatas palavras não lembro, mas dizia algo como “você já foi mais atencioso, e muito mais cavalheiro! Não vê que a menina precisa de ajuda, bem na sua frente?”

Entre a garota da boca e a menina dos olhos, creio que me assemelho muito mais à segunda. Por isso, volto minha atenção àquela que descia em minha frente, e noto que havia ela deixado cair um colar, para o qual olhava atônita, completamente incapaz de mexer algum dos braços em direção ao objeto e agarrá-lo. Seu olhar era de tamanha incompreensão; só alguém que não pudesse entender como o cérebro sabia o que precisava fazer, mas ainda assim não tivesse um corpo capaz de obedecer, esse olhar apenas esse alguém poderia fazê-lo. A cena é trágica.

Em resposta, meu olhar é blasé. Minhas sobrancelhas treinadas fazem pouco caso, então nos viramos e olhamos, elas e eu, para a garota da boca, e sem dizer palavra mais uma vez, deixamos claro que “foda-se essa porra”.

Com essa atitude me percebo um pouco tonto – meio bobo, meio desequilibrado. Caminho cambaleante até um banco à beira do balcão do bar, onde encontro minha jaqueta e um colar de caveiras douradas presas por uma fita vermelha. A jaqueta é pesada, de couro, e preta. Quando tomo para mim meus objetos e decido alcançar a porta de saída, um estrondoso ruído seco marca a parada da música, que até agora não havia notado, mas cuja ausência deixa claro que estivera durante todo o ocorrido ali, presente.

A música dá espaço a rumores. Os frequentadores destas baladas, sobre os quais já expliquei um pouco, são grandes frequentadores de rumores – gostam de criá-los, lê-los, sabê-los, vivê-los. Vivem como se seus próprios temores fossem temas de rumores oninteressantes [puro neologismo absurdo, no entanto lógico], estão sempre em teorias de conspiração onde gente má e invejosa busca em vão dar cabo à sua felicidade. Felizmente, existem armas contra isso*: posts anonimamente endereçados aos invejosos nas redes sociais, que são imediatamente apoiados por gente igualmente vítima da novela da vida; e configurações de privacidade em seus álbuns de fotos. Um viva à tecnologia, que dá alternativas para que possam viver suas vidas um pouco mais tranquila e reservadamente.

* Desde que o mundo é mundo, há também a alternativa de simplesmente não se relacionar com pessoas que não sejam do seu interesse ou simplesmente não façam bem. Mas para quê facilitar? Afinal, viveríamos de popstar [sic] o quê?

Voltando aos rumores causados pelo estrondo, esses dão conta de que a menina dos olhos possa estar morta. Não dou muita bola porque não quero crer nem mesmo na simples – no entanto complexa – possibilidade da morte de minha pupila! Sim, se me assemelho mais à menina dos olhos que à garota da boca, isso tinha razão de ser. Algo secreto sempre houve entre nós, e se era secreto, por isso não me abaixei para ajudar com o colar! Por isso não disse palavra! Por isso! Por isso passei batido, e por isso decidi ir embora! Não queria demonstrar algo que não podia, sem entrar nos méritos de se sim ou não gostaria.

Um médico de sonho toma seu pulso em meio ao círculo de gente a seu redor. Com olhar frio de quem já fez isso mais de duas vezes, anuncia sua morte.

Imediatamente, todos os presentes voltam seus olhares ao namorado da falecida. Ou seria ex-namorado? Afinal, não creio que nem mesmo a justiça dos homens considere legal um namoro entre morta e vivo – pense bem, uma das partes está impossibilitada de impor seus limites e vontades, o que não é, de nenhuma maneira, justo. Consideremos que ele vá deixando de ser o namorado à medida que o clima esfria.

O namorado está sob os olhares atentos de todos os convivas, menos eu. Tem um tipo de vampiro, então pensei em chamá-lo de Luminati para efeitos dramáticos apenas. Está um pouco gordo, então é certo que deve tomar umas taças de sangue a mais que o normal, sendo sabido que sangue engorda. É vampiro dos tempos em que vampiro não ia à praia, no entanto tem as sobrancelhas feitas. Apesar de frio, parece em choque. Em movimento súbito, transforma a balada em restaurante, e o balcão do bar em balcão de comida japonesa, daqueles com esteiras como as de resgate de bagagens em aeroportos.

A esteira roda ruidosamente ao mesmo tempo que começo a chorar copiosamente. Meus olhos materializam a dor pela perda de minha pupila; as lágrimas lavam a alma e choram a perda da menina dos olhos. Enquanto isso, todos os outros olhos me parecem repreender, como se não tivesse direito de estar ali ou de chorar por isso. E o segredo de nossa relação vai sempre conferir-lhes razão aos olhos do mundo, a não ser que revele a natureza de minha tristeza, o que não pretendo em razão da honra que jamais deixaria de manter após tão triste e inesperado evento.

A esteira roda e velam o corpo que jaz sobre ela, passando em frente aos olhos estéreis dos rumorosos indivíduos a velar e orar por sua morte, o que continua incoerente com quem são. Não consigo parar de pensar na tristeza que é perder alguém assim tão jovem, tão subitamente, e de maneira tão definitiva.

Procuro meu jornal sem sucesso, e logo me vem o volátil desejo de roubar um. Não sei exatamente a razão de tal vontade, assim como não busco entender o porquê ou a moral de quase subitamente haver desistido da ideia. Na prática, gosto de pensar que o mesmo objeto que distrairia meus olhos, secaria minhas lágrimas.

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