sábado, 11 de julho de 2009

BALEIA

Patagônia, só e uma garrafa de Syrah. Geleira grave, azul e imensa, sem eco nem ruídos. O rótulo de trás diz que tem paladar fácil, não se precisa ser iniciado para engolir fácil, é “o vinho mais suave de todos os whiskies que já provou” [?]. WTF. Me ponho a beber, por quê não, afinal lia não para concordar, mas para passar tempo naquela posição antiespacial e atemporal.

Não me ouço há horas. Não há dias. Não me ouça à noite.

Uma hora, duas três um mês e quinze, anos. Rá! Que surpresa e que Dalí do gelo aquilo tudo se mover como um transformer à minha volta, meu pequeno círculo irregular se evidencia, tudo se racha e despenca, ou é meu spot que se evidencia e lança-se ao alto como olho de mordor, como se me chamasse Eiffel ou obelisco aos que sempre acreditarei separatistas.

E não é que Syrah vai bem e muito com ares patagônicos!

“Não gosto quando conferem gravidade a xingamentos acrescentando ‘patagônica’” foi a primeira que me ouvi.

Aparecem desesperados e desprovidos de sentido uma mãe e um empresário de estacionamento, necessitados de algo. “Hidratante pra quê?”, e olho pela janela do automóvel em movimento e que ninguém dirige para avistar uma baleia em corpo de cação. Respira como eu, diferente. Estamos desesperados, ela e eu, muito mais que os outros dois. Ela e eu sabemos de algo que só pertence a nós, e de tão absurdo ninguém nota nenhum desespero anormal em nossas feições.

Corremos por farmácias e hospitais, clínicas a fim de conseguir algum bálsamo que a mantenha viva até que consigamos colocá-la em água. Estamos, afinal, em São Paulo, São Paulo, e apesar da chuva é uma baleia, cuidados especiais e não uma água pluvial de cidade grande.

Chegamos a uma Onofre, Rebouças com Pedroso, e o empresário [“por que raios se precisa de gravata para isso”] mostra a baleinha ao atendente, que retruca, “isto é um tubarão”, ecoado por outra que diz categórica “é um cação”. Pobre dos dois que não vêem que ali nossa baleia só faz sofrer, não consegue dar suas rabadas imponentes, cantos subaquáticos. Seus esguichos.

Está insatisfeita, nossa baleia minha. Sei isso de olhá-la nos olhos, a gente se conecta diferente, a gente se transmite. Temo que esteja desidratada demais, alguém teria um Victoria’s Secret ou algo que o valha? De morango é muito doce para seres marítimos, e não queremos cheirar fritura, mas peixe que somos. Não, não somos, é. Não, ninguém é, mas mar.

Nosso amigo segura a baleia e tenta convencer os farmacêuticos a ajudar-nos, diz à mocinha que passe os dedos pelas fileiras de dentes na boca do animal, ao que ela diz ser realmente uma Baleia dos Dentes Arredondados. Está muito magra e cansada, não deve comer nada há uma hora, duas três um mês e quinze, anos.

Tomo em minhas mãos o que seria o animal, seguro com cuidado para pesá-la na balança, agora ela realmente tem mais a forma de um pequeno tubarão de aquário, e aí seria peixe, que da simpática baleinha de antes. Pobres de nós, minha baleinha, parece que nos esvaímos de nós mesmos, mas ainda eu tenho força física e se você partir vai me deixar só o corpo, os corpos, o seu e o meu, porque o que quer que carregue dentro deste também me sairá de pronto.

Foi encostar seu ventre no piso da balança e seu olhar me avisou que partiria, quase avisou que já partira. Parti de mim, parte de mim.

Quanto pesa a morte? Não ousei o visor.

Sou aparte.

Sendo assim, caminhar. Quem não gosta, boa pessoa não é.

Ando vagabundo, meditabundo, um mais que outro e sempre os dois.

Elevadores ao norte, não há botões para mim mas entro. Escovado, amarelado e quente. Em vez de subir, gira e apita ao parar. Empurro a porta e saio de um microondas em copa de firma. Não é a minha mas tenho uma assistente dando entrevista a centenas de jornalistas fúteis.

Sou Cusack. Pelo pulso: “perdoem, não sabe o que fala, é seu primeiro dia e está sob efeito de medicamentos”. Aplausos.

Muitos vidros e coloridos, modernidade passada e kitsch, cool. Uma bela prostituta entrega um aquário, minha baleinha!

Abraço por trás alguém. Primeiro pela frente, e apenas de camiseta mais curta que branca. Sou obrigado a lhe segurar os seios em ato nadassexual, mas nada disso; fica indissociável. Seios fartos e macios como silicone não havia de ser, mas era. Agora sim, abraço sentado e por trás. Passam e olham, normal se não fosse estranho.

Me precipitei, a culpa foi minha. Precipitei meus olhos de nuvem. “Precipitou-se, sim, anta patagônica, e a culpa é toda sua”.

Falei ou pensei? Como ela sabia? Que importa... e olhando agora, ela era muito mais prostituta que bela, talvez apenas prostituta. Obrigado por nada.

E assim, corte seco, barranco íngreme de grama cortada e úmida. Casa simples. Deitados com os pés para o lado alto, olhar ao céu, à casa no alto, imponente. Estrelas e uma tatuada do pretérito bem ao lado.

Pai?

Vão jogar da casa grande um bouquet, e será para a irmã diferente como se fosse querida. Não há erro, pega-o, entrega-o e observa.

Qual o quê! Tacaram na minha cara, e de cabeça para baixo me defendi, entregaram, entreguei, pequeno e feio bouquet de braço de festa colegial norte-americana, um convite póstumo todo destacável e personalizado que de fato a fez sorrir. “Viu!”.

E todo o muro de arrimo era uma gigante tela com meu irmão dentro, Bart em forma de Ralph.

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