segunda-feira, 20 de julho de 2009

ÉPICO

Colônia de férias. Não quis sempre ensinar? Estamos em um cenário bucólico, pinheiros abacateiros amoreiras patos e marrecos. Pato pato pato, marreco não é pato.

São aproximadamente trinta as crianças que me chamam de tio. Penso que ou meus irmãos se apressaram e tiveram múltiplos, ou sou professor. Defronte a tantos pequenos, sinto-me na obrigação de um mundo melhor e penso ensina-los a pintar e conceituar um quadro infantil. Lá na frente me serão gratos, pois nunca serão porque sim.

Peço que apreciem a paisagem e encontrem qual faceta mais lhes agrada, um a um, e a observe intensamente até que retorne com o material necessário, que está em casa.

Desço a escada do alecrim e só tenho lembranças tristes, menos lembranças que sensações. Lembranças se consegue documentar, diferentemente de sensações. Estou no patamar da vergonha quando um pequeno gato laranja morde minha canela, abraça com as da frente e empurra com os pés freneticamente. Mais um gato maluco.

Ele pula do alto patamar em direção a qualquer coisa que arremesso lá embaixo. Se espatifa sem perder o ânimo, pega qualquer coisa e, num pulo, alcança o patamar, quase direto. Precisa que o agarre e puxe para não cair. Está preto agora, deve ter sido a queda. E late. Late para lembrar que preciso de um novo colchão e fraldas.

Esqueço das crianças, corro por uma avenida que se não Sumaré, outra. Isto é certo.

O gato é filhote e cheio de energia, me acompanha. Mais do que isso, é o coelho que me impõe ritmo. Perco o ritmo. Outra vez o empecilho do qual ainda não consigo me livrar! Correr é a tarefa mais difícil de todas que tento à noite.

Novamente minhas pernas começam a diminuir, a calça sobra, enlameio-me todo e sinto dor, a dor da impotência. Vejo as crianças que deixo para trás, vejo o gato que escapa lá na frente, vejo tudo que deveria um dia ser meu e ainda não é, ou nunca será.

Vejo uma praça recém podada, recém aparada. O cheiro é inconfundível. Aproveito os restos da poda e arrumo um cajado que me escore até a banca do Patrick, lugar mais apropriado para comprar o que preciso.

Ando por avenidas e ruas e alamedas e praças escuras e vadias dentro do Jardim Europa, solitário, como se a distância entre os logradouros fossem coerentes às continentais, exaurido. Chego ao estacionamento onde está o trailer-loja. Peço um colchão queen-size, fraldas tamanho grande e desculpas. Sempre cortês o atendimento, fico mais tranqüilo. Agora posso prover aquelas pobres crianças de algum conforto e segurança.

Já é fim de tarde, e decido por um atalho, uma escada. O colchão e as fraldas se transformam em frutas e carne com o piscar de uma seta. Desço centenas de degraus em lances de 13. Parece bastidor de mercado, supermercado, hipermercado. Centenas de degraus em lances de 13. Silêncio, soa o som da sola contra o metal, soa apressado e derradeiro. Último lance, quarenta e oito do segundo. Quarenta e oito no último lance! E pior, ao contrário, de forma que é um abismo.

Largo o pacote com as frutas e carne, desço sozinho para não arriscá-los. Por trás de uma porta ouço gritos neuróticos de um chihuahua. Uma outra traz luz pelo vão, deve ser a saída. Abro-a, estou num posto de gasolina, inerte, inebriante o cheiro de combustível que me penetra as narinas e faz combustão nos pulmões.

Sou visto.

O frentista-assistente avisa o diretor de combustão que estou ali, e me perseguem. Subo de volta o abismo com agilidade que nunca tive. Todas as crianças estão, de repente, de repente, ao meu lado, cada uma em um lance de escada, as paredes caem e somos um navio, cada lance é um patamar no mastro principal. Somos vermelhos, cada criança daquelas é um de nós, que envelhecidos não sabemos mais quem somos. Mas agora somos crianças de novo.

São crianças de novo, eu não.

Assumo o patamar da vergonha e digo “vermelhos, atirem as bolas de queimada sobre todo e qualquer amarelo, à vitória e à glória ou à morte brava, bravo!”.

A parte do sangue e da regra não conto, desnecessária. Vitória dos vermelhos, honrados de volta ao condado, observando a paisagem que mais agrada a cada um.

Garotas jogam vôlei em uma quadra de basquete com bolas de golfe. Do alto da tabela, como se fosse ainda o capitão, vejo no rincão mais distante um Caio preso no Alto de Pinheiros. Renato observa e clama por ajuda. Corro, o carrego nos braços descendo pela casca áspera da árvore, enquanto Renato diz “esse rincão é todo cheio de forquilhas, são treze. Perfeito ideal para uma encruzilhada, Zequinha à vista”.

Enxofre e fumaça, entrego o corpo de Caio, que não me larga os dedos com facilidade, ao Zequinha.

“E então, crianças, o que acham de ilustrar esse épico?”.

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