terça-feira, 18 de outubro de 2011

FORA DE MIM

PREFÁCIO

Aprendi com Sigmund algumas várias coisas em minhas leituras, e uma delas transformei em equação:

Sonho = [ideias como fatos] – eu

Sei que a Matemática tem sua notação, e se a respeitasse, usaria () em vez dos colchetes na dada expressão. Que importa, se já disse aqui e ali que prefiro [] a parentes [sic]? Ao menos os primeiros posso escolher, e por mais quadrados que sejam, são diferentes sendo sempre iguais. Ta aí uma sentença cheia de sinais.

Traduzindo #1, a sentença:
Ao – os 1ºs posso escolher, e por + ²s que sejam, são ≠s sendo sempre =s.

Traduzindo #2, a expressão:
Quando sonhamos, tomamos por verdade todas as manifestações que povoam nossa mente. Dado que os sentidos na vida onírica estão menos ativos que na vida de vigília, e dado ainda e acima disso e além que nossa capacidade e/ou necessidade de julgamento está menos desperta, a esperta da inconsciência nos espeta com um monte de sandices disfarçadas de coisas normais e fora de contexto, em formas e combinações tão absurdas que só fazem sentido sonhando – o que em parte explica a facilidade com que nos esquecemos dos sonhos ao acordar, pois causas, consequências e sequencialidade lógicas combinam todas a favor da memória. Bem, essa ausência do seu, do meu, do nosso eu, da capacidade de comparar e julgar e distinguir verdade de ilusão, essa ausência do eu que faz tudo parecer real mesmo sendo tão irreal visto daqui e Dalí. Bem, aqui estamos, dá 10 pra mim, Giba, óia. Sonho = [ideias como fatos] – eu.

E o mais maluco é pensar que talvez cada uma dessas maluquices não seja realmente a loucura que aparentam ser, mas uma outra, talvez mais esquisita e talvez por isso mais escondida nas profundezas daquele baú mental que nem sempre e talvez nunca tenhamos vontade de assumir. Pois afinal, o ruim não é pensar, mas ter tais pensamentos a nós atribuídos, não é mesmo, Friedrich?

ENTÃO TÁ, SAI A VIGÍLIA, ENTRA O ONÍRICO.
[Cortinas se abrem, vermelhas de veludo alemão]

Tudo começa numa rua em que se fosse Sábado haveria feira. Por isso, se não tem feira e não é Sábado, só pode ser o quê? Isso mesmo, hoje é Dô-minnn-go – bem Cid Moreira.

Na rua onde se fosse Sábado teria uma feira, há uma casa estreita. É uma casa de mãe, sem dúvida o é, fato que explica a razão pela qual posso entrar tranquilo como estou pelo portão de pessoas, feito de ferro e com pontudas ponteiras nas pontas, contíguo a um portão de automóveis – ou de automóvel, para ser mais preciso, pois vaga só há para um.

Passamos pelo portão de pessoas. O primeiro plural é porque me acompanham dois cachorros, o que me leva a uma correção: o portão não é de pessoas, mas de entrar andando, afinal cães por ele também podem e passam. Chamemos-no apenas de portão, ou portão de ferro na necessidade de um sobrenome, ou ainda portão pequeno, na necessidade de uma classificação em oposição ao portão de passar com o carro – que é grande.

Entramos pelo portão pequeno os dois dálmatas e eu. Minha mãe cozinha na cozinha, e enquanto meu corpo vai encontrá-la, minha consciência fica para ver que deixei o portão semiaberto, assim como a porta de entrada – ou saída – da casa. Pela fresta, meus dois dálmatas entram e saem livremente, rapidamente, acompanhados de um terceiro cão, dálmata também.

Depois de brincar na garagem, os vejo entrar e correr para o fundo pelo piso de tábuas corridas longitudinais, escuras e lustrosas, reflexivas. Acompanho-os ao longe, voltando minha atenção para onde vão e de onde venho, de onde vem meu corpo. Assim que ele me alcança – verdadeiramente cool essa sensação –, flash frame, mudança de câmera [Seria isso uma mudança na pessoa da câmera? Tenho dúvidas, afinal corpo e alma somos um só].

Assim que o corpo me alcança, viramos juntos e olhamos para fora, apenas eu. Vejo pela fresta da porta entreaberta um mendigo que força o portão igualmente entreaberto. Por onde tenta passar, ele mesmo percebe que não vai conseguir, e que para seguir com seu plano, precisa subir – o que faz.

Ao que começa, ordeno gritando que pare. Bem, o grito parece incomodar ainda menos que as pontudas ponteiras sobre as quais apoia as mãos sujas antes apenas de sujeira, agora com um pouco de sangue. Ordeno, gritando, que pare; quando paro, ele grita algo como “eu vou entrar nessa merda e levar essa merda de carro, porra, e vê se para de gritar igual uma puta histérica filha da puta, caralho”.

Corro para dentro com sangue nos olhos, então para fora com um cajado nas mãos. Enquanto ameaço o mendigo com o pedaço de pau, duas coisas acontecem: grito o nome do meu irmão, João, e um segundo mendigo observa a cena toda, são dois. Grito com todo meu ar, e com toda a força restante do ato de golpear. Meu irmão não desiste de não aparecer, sinto uma angústia da frustração de não consegui-lo convencer, mas felizmente o mendigo desiste de entrar.

Corro novamente para dentro, onde enfim encontro meu irmão e o convenço de que a situação é mesmo grave e de que preciso da sua ajuda. Preciso ser muito convincente, e sou ao discursar: “vem comigo, precisamos matar esses filhos das putas. Mas antes precisamos encontrá-los”.

Subimos a rua vazia de Domingo. Aqui tem uma inconsistência nos fatos que pode afetar toda a interpretação da história: tenho certeza de que seguimos para a direita, tanto quanto tenho de que a padaria onde chegamos fica para a esquerda. E você, que já leu algum sonho anterior ou vai ler um posterior, se é que isso ou tal pessoa existe, não deve ter percebido o que vou revelar a seguir, mas direita e esquerda são duas coisas que muito me interessam. Assim em comum temos os aparelhos de som, as técnicas de desenho, as setas dos automóveis, calçados em geral – a não ser pantufas –, ears e headphones e tantas outras coisas para as quais L e R fazem algum sentido e diferença.

Subimos a rua vazia e chegamos à padaria cheia. Aqui, deixa comigo: “eu quero saber quem de vocês sabe quem são aqueles dois filhos da puta que estavam rondando a área, ameaçando entrar na casa dos outros e, mais importante pra mim, ameaçando entrar na casa da minha mãe. Quero saber quem são e onde estão esses arregaçados do caralho, porque se ainda não são, vão ficar arregaçados de verdade”.

Mais uma vez me dou conta que estou fora de mim, e dessa vez de duas maneiras: 1] estou fora de controle; e 2] vejo meu corpo se mexer e minha garganta gritar de longe.

Como já sei tudo que estou pensando, paro de prestar atenção em mim e começo a olhar ao meu redor, o que vejo? Os dois mendigos assustados, tentando passar despercebidos, semiocultos por um telão de projeção onde aquele bando de barrigudo tomador de cerveja assiste a partida e enche a cara ao esvaziar copo após copo durante nunca menos que cento e cinco minutos mais acréscimos.

E como meu corpo e eu somos um só, assim que tomo consciência de que são eles, meu corpo parece sentir o mesmo. Só dá tempo de matar o rabo de galo proibido, bater o copo americano Nadir Figueiredo sobre a vitrine opaca de pastéis velhos e ovos coloridos cozidos e partir pra cima. Vai ser um deus [deus?] nos acuda. Um pega pra capar. A coisa vai ser tão feia, tão feia, que vai ser lindo quando terminar.

Vou pra cima deles finalmente, chegou a hora. Acontece o que é típico das brigas de bar: fico cego, mas não para tudo. Fico cego para tudo ao redor, consigo ver tudo que preciso tão claro, que todo o resto fica escuro. Brigar na rua é assim, uma vez que o sangue esquenta, nada mais importa. E tem mais, o sonho de hoje não tá aquela frescura de se reprimir, não. É soco na cara.

Mas sempre tem uma merda pra atrapalhar. Eu soco a cara dos filhos da puta. Soco as caras sujas deles, soco os rins, o baço, bato pra valer. Só que por mais que eles gritem, não parece que está doendo. Lanço mão do cajado, e o pau ta comendo solto. Paulada no nariz, paulada na nuca, na testa. E os caras gritando em azul.

Putaqueopariu, azul? Na boa, azul não dói.

Os dois mendigos agora são três, e os três estão caídos no chão de costas para baixo e bundas ao alto. Sem dó, eu continuo castigando os malditos, o cajado tá até gastando. Já pensei que nada poderia ser mais humilhante que um tapa na cara com as costas da mão, mas pode. Imagina o que tava rolando enquanto descrevo pra você: depois de socar os três mendigos sozinho e pra valer, eles caem no chão de bundas ao alto e gritando azul, mas não paro, empunho o cajado e bato no cú deles. Bato pra machucar menos que pra humilhar. Se fosse um sonho onde coisas malucas podem acontecer, chamaria um cavalo.

É estranho, ele parecia valentão antes, o mendigo que queria arrombar ou saltar o portão e cair pra dentro, mas agora não passa ele mesmo de um arrombado. Agora nenhum dos dois que viraram três esboça reação. Eles parecem aceitar toda penalização a que lhes imponho. E nesse domingo eu estava cruel – ainda parecia que eles estavam azuis.

Então foda-se, vou até o fim. Já foi soco, chute, paulada... vamos pra garrafada. E a padoca ta lotada de garrafa. Garrafa na cara. Garrafa cheia de whisky, garrafa cheia de cerveja, garrafa cheia de raiva. Quando cada uma delas bate na cara dos oponentes, aí sim dá pra sentir a dor. Agora tá tudo vermelho, vermelho igual a cortina de veludo alemão. Agora tá doendo, tá machucando de verdade. Vou ficando ébrio da raiva e da virtual insatisfação que toda porrada do mundo não vai esconder, ou melhor, talvez só faça esconder – mas não livrar. Estou bêbado, completamente fora de mim e tomado pela raiva, que é insaciável. Causo desgosto, mal estar.

Os bêbados barrigudos olham e choram pelas garrafas que se vão, ninguém é condescendente pelos que apanham, apenas pelos litros de cachaça que se vão pelo chão, junto com o sangue. Mas do sangue, apenas aqueles três coitados vão sentir muita falta ou falta nenhuma.

Um amigo do trabalho surge do nada com a missão de dar força, apoio, de corroborar toda a minha alforria. Me entrega na mão uma gigante garrafa de whisky, uns cinco litros. O líquido é bem turvo, não parece nada com whisky, parece um chá velho com partículas em suspensão. Meu amigo chacoalha a garrafa para misturar, dá nojo.

Uma mulher indefinida aparece com a razão e diz “é normal, tudo hoje em dia tem conservante. E tudo que precisa de conservante é porque queremos artificialmente fazer com que dure mais; queremos fazer com que as coisas durem mais do que foram feitas para durar naturalmente. Mas quando duram mais do que deveriam, as coisas podem ficar feias. Hoje tudo tem conservante, o que deixa tudo ruim”.

Nos meus sonhos e na vida, parece que as mulheres sempre têm razão. Não todas, o que leva a não sempre, mas gosto de pensar que sim.

Bom, com isso eu concordo: as coisas têm que durar o tempo que foram projetadas para durar. E se não foram projetadas, tanto pior, melhor que nem existam. O que não pode é querer que tudo seja pra sempre. Nem whisky.

E aí, como se não precisasse fazer sentido, surge um questionamento: será que há chance de o melhor sabor de hamburger ser o sabor do hamburger caseiro?

Sou eu, ou essa última frase não faz o menor sentido?

Sei não, mas não sei nem se estou aqui dentro de mim. Porque olha, se tudo isso se permite acontecer pela minha ausência, pode-se dizer que eu me censuro pra caralho.

Vou dormir pra me ver livre de mim.

Um soco.

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