terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

SABEDORIA DAS CORUJAS

Acordo com a nítida sensação de que comecei a sonhar. Eventos futuros comprovam minhas desconfianças – somente o absurdo é capaz de me não manter entediado nesses tempos de guerra.

Uma aniversariante fala ao telefone, tenta explicar em uma conference call a todos como chegar ao local da festa. Sei que faz aniversário pelo chapéu cônico e cômico sobre sua cabeça. A aniversariante pede ajuda, e me ofereço para dirigir até o local.

Assim que chego, entrego o veículo laranja ao manobrista, que me retribui com um papel de valet contendo em vez de número, o dizer “é nóis”, seguido pelo número 11. Olho para a comanda e, ao me dar conta do número, retruco: “essa é a comanda de quem não bebe”, ao que ele contra-argumenta “é melhor assim, pois seu carro vai ter que te levar embora, fechamos às 11”. Nesse exato momento me enervo, mas sem demonstrar, e digo “isso é problema meu e dele. Arrumo uma mulher que o conduza, a minha”.

O manobrista então sorri, cede e me concede a comanda que permite ao portador beber, mas não sem fazer ressalva: “vê se maneira, tá?”. Sorrio por fora e por dentro, mas não digo “tá”. Nesse mesmo instante, um puta de um barulho de metal contra metal. Filho da puta, um maloqueiro bateu no meu carro preto. De moto. Ele levanta todo Kramer e tenta amenizar a situação:

- Calma, amigo, não aconteceu nada. Veja só, só fodeu a traseira. Vai custar algo entre R$ 800,00 e perda total. Em todo caso, está aqui meu telefone caso queira bater um papo. Grana não vou ter...

Não sei se admirado, mas fatalmente perplexo, decido entrar no bar, que é um restaurante. Peço mesa para seis, e assim que me sento, chegam 5 castores – pais e filhos. Todos os pés da mesa são de troncos pesados de madeira, de forma que me sinto preso, levemente pressionado contra a parede.

Me perguntam onde fica o toilette e não esperam resposta. A comida chega. Como orecchiette amatriciana, a mamãe castor come salada, uma família de grilos come muito e o restante dos castores rói os pés da mesa. Toda a cena se transforma sem pedir licença e me vejo em meio a um culto judaico com meu prato na mão. Meu prato amatriciana, com pancetta. Irônico, vai?!

Trata-se do culto do “Sarro ao Cristianismo”. Não vou entrar em detalhes, mas te garanto que eu, que não sou nem uma coisa, nem outra, ainda assim me senti na obrigação de reprovar e pedir pra fazer mais. Passei um briefing para alguém de minha confiança explicando o porquê da minha desaprovação.

Ando pelos corredores da Sinagoga em direção à Slot Machine. Percebo que algum otário deixou um crédito de 11. Ou um otário, ou deus [deus?] tentando fazer com que acredite na sua existência. Ganho, na primeira puxada da alavanca, e meu crédito sobe para 77. É, cara, você vai ter que se esforçar mais se quiser fazer com que eu acredite. Está certo que de 0 para 77 o crescimento percentual é simplesmente infinito, mas em números absolutos isso não diz muita coisa.

Em uma tela que transmite a câmera de segurança, vejo um irmão e uma mãe que não são senão os meus discutindo sobre a possibilidade de meu comportamento contestador ser reação à medicação. Fico puto por dentro, porque estou tentando justamente contestar menos, agir mais, mas “isso é problema meu”.

Continuo pelo corredor a fim de sacar meus créditos divinos. Não são, mas vou chamá-los assim. Para fazer o resgate, o grave atendente do guichê solicita meu Amex e pede para que digite seu número de cabeça na máquina. Erro uma vez, duas e me prendem sob acusação de fraude. Eu, que não sou réu primário nem nada, já dou um jeito de me transformar em uma criança negra com um pai negro. Disfarce bom: menor de idade, acompanhado, não bate com a descrição do criminoso. Genial esse meu subconsciente.

De toda forma, nos mandam aguardar na chuva. Já estou sozinho de novo. Engraçado que quando mandam esperar na chuva, não chove; assim que alcanço o pátio, no entanto, chove torrencialmente. Todos os judeus correm alucinadamente para se proteger, entram em seus carros e zarpam. A cena é bem, mas bem similar a uma do Último Portal. Aliás, aquela diaba é misteriosa, hein?!

Caminho desolado pela chuva e já sou eu novamente, sem risco ou medo de detenção, e deixo para trás uma irmã paraplégica. Caminho por ruas e viadutos chorando – na impossibilidade de correr, a chuva passa de segunda a primeira melhor alternativa para disfarçar lágrimas.

Para atravessar um viaduto, percebo que existe um atalho de terra fofa, com uma espécie de folhagem macia. Cães gigantes e calmos me observam. Apesar de calmos, não se engane, são igualmente amedrontadores, e na tentativa de não exalar o cheiro do medo, rolo na terra fofa, quase caio num precipício antes de me segurar em algo que não conseguiria descrever em mil palavras, afinal uma basta: cipó. Passa um menino sujo, o mesmo menino em que me havia transformado parágrafos atrás, e diz que para ele, esses caminhos mais curtos são fáceis. Os cachorros lhe sorriem. Solto do cipó.

Acordo em uma cama muito louca do séc. XVII ou de quando seja, mas é pomposa, bela e inusitada. Em lugar da cabeceira, uma cortina suave, mais como um véu, guarda o berço de um bebê. Pego ele no colo e vejo que sou eu. Todas as manhãs, sou o primeiro a vê-lo. O quarto também tem mais tamanho de Apartamentos de Napoleão que propriamente um quarto de dormir pós moderno. Me coloco no berço novamente, com cuidado, e caminho até a varanda.

Lá, me espera uma mulher loira muito esguia e sorridente. Apesar dos olhos suaves, tenho certeza de que não é flor que se cheire, e por isso lembro que por isso gosto dela. Sem que digamos palavras, um pássaro cinza claro voa para dentro da varanda. Ele é bem redondinho, fofo, parece que suas penas ainda são penugem. Parece um filhote. Ficamos sem palavras, mas dizemos muito ao trocar olhares.

Antes que nos volte a fala, toda uma revoada de pássaros similares inunda a enorme varanda. Eles passeiam desajeitada e divertidamente pelo chão e parapeito. Pego na mão o primeiro dos visitantes que chegou. Um cachorro late, e o filhote de pássaro imita absolutamente igual. São filhotes de coruja, e não farão por menos ao mostrar sua tão precoce sabedoria.

Depois de latir, a corujinha conversa comigo. Olho para a mulher loira, igualmente perplexa. Conversamos rapidamente sobre o sentido da vida, algo que não poderia explicar em mil palavras e que se passou em milissegundos e que se esvaiu em uma fração disso. A corujinha cinza claro, bico e garras de rapina pretas, toda de penugem e chamego em minhas mãos. Digo que preciso que ela fique, ou ao menos gostaria. Ela retruca:

- Você certamente quer, mas seguramente não precisa. Segure a mente e não encontrará resposta mais precisa.

A mulher loira me observa, sorri ternamente, faz um gesto com os braços que não assusta, apenas conduz à debandada de todas as corujinhas. A que estava em minhas mãos é a última a partir. A mulher se volta para mim e então ganha voz:

- Você sabe que elas serão mais felizes soltas, apenas não quer abrir mão.

Sua mão fecha sobre a minha, entramos novamente no quarto e apesar do sonho acabar, creio que estava indo cuidar do bebê.

Um comentário:

  1. Show Daniboy! Lendo seu texto me dá vontade de escrever, mas eu tento evitar a fadiga!


    Camilo.

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