domingo, 10 de abril de 2011

Casal irreal

Quem os avistasse de longe pensaria se tratar de uma princesa e seu príncipe.

Quem visse de perto, no entanto, não se enganaria. Tratava-se de uma princesa, de fato, mas acompanhada de um simples plebeu. Bem, não, não tão simples, não, um plebeu diferenciado e diferente e desafiador e desacostumado às convenções dos mundos real e Real. Preferia um mundo irreal. Nisso combinavam.

Afora essa confusão possivelmente causada pela distância do olhar de quem olha, bisbilhota, especula e exagera e inveja, de perto era fato – de perto não importava a casta, a classe, a estratificação do modelo social, era fato que estavam apaixonados. Nem o maior dos céticos e desiludidos poderia negar.

Havia em seus olhares não o brilho de quem enxerga o mundo todo e o reflete. Havia, em seus olhares, a opacidade de quem enxerga uma e só uma coisa e descarta todas as outras, em verdade uma e só uma pessoa, um e só um ao outro. Mais nada. E tendo um ao outro, nunca nenhum dos dois se sentiria só, nem nunca nenhum dos dois precisaria de mais nada.

Tudo que houvesse de mais, seria demais.

Mas há nisso algo de novo? Não. Tudo que há nisso é tudo o que há em centenas de milhares de histórias contadas, escritas, imaginadas, inimagináveis, jamais contadas, impensáveis, histórias de homem e mulher e amor e causas impossíveis.

Por quê?

Porque o que se passava entre eles nesse período era perfeitamente simples e simplesmente natural. Comiam e bebiam, falavam e escutavam. Sorriam, e de tanto sorrir, choravam. Andavam pelo reino, onde as partes nobres eram por ele aprendidas, e as partes cruas eram por ela devoradas. E claro, como haveria de ser, isso não era senão a absoluta completude.

Mas não existe tal coisa sem uma outra. Não existe a maldita completude sem a bendita inveja ou vice-versa. Ou outras coisas, como a falsa moral, a falsa amizade, a falsa verdade... A moral e os bons costumes faziam com que a nobreza os julgasse inapropriados, indecentes, um casal impossível e infrutífero, não capaz de fazer jus às honras e tradições reais. A doce temeridade do povo os condenava não por nada que não fosse medo do potencial, que a seus olhos ignorantes parecia negativo, pois são incapazes de perceber que toda mudança para melhor nasce de um desconforto, de um medo inicial e de uma angústia sem fim, sem fim até que acabe. São incapazes de perceber o verdadeiro potencial das coisas, mas isso não é culpa deles.

Moral ou medo, por fim ambos confluíram para a pré-sentença que os levava ambos ao banco dos réus. Mas a contumácia os impedia de reconhecer essa autoridade, e assim continuaram.

Uma bela tarde, nadavam no mar defronte às varandas do palácio. A água era limpa como suas consciências. Talvez.

Na bela tarde em que nadavam no mar defronte às varandas do palácio, uma plebeia fazia o mesmo. Não fazia porque queria, mas porque cuidava dos interesses de outro alguém. O rapaz nadava de costas para o mundo, e ela de costas para o sol, sobre ele, deitava e sorria e cantava olhando em seus olhos opacos. A plebeia, nesse momento, sentiu a ternura e agrediu:

– Vocês deveriam se casar, fazem um belo casal.

Talvez. Pois a princesa abalou-se:

– Com que direito e com que conhecimento se dirige a mim e especula sobre o que devo fazer? Isso que profere é uma... isso é uma... é uma... uma...

Seu par, até então feliz, chateou-se por duas razões – por vê-la desfalecer em seus braços e afundar, e por perceber que ela também não admitia lá no fundo de seu coração que fossem ambos capazes de ser felizes. Percebeu naquela hora que isso era uma aventura, desventura, o que fosse, mas não era amor.

Bem, como disse, afundou. Ele afundou junto. O tempo, digo, o clima, virou de pronto, e junto afundou. Ele nadou até o fundo, baixou seu orgulho a um nível onde jamais esteve antes, e tentou resgatá-la. A chuva veio forte, e começou a escoar toda a água como uma enxurrada ou um tsunami em que ele, com ela nos braços, definhava.

Perderam-se os sentidos. Ambos desacordados. A boa notícia era que a essa altura, apenas um amor morria, ou meio que fosse, o dele por ela.

Não se sabe quantas horas ou segundos se passaram até que a intensa sucção nesse túnel cessasse. E quando cessou, ele recobrou os sentidos. Recobrou os sentidos e decidiu que não deixaria de amá-la. Pegou-a nos braços e correu em direção ao castelo. Correu em direção ao castelo, onde as sirenes soavam alto e socavam forte contra seu estômago.

Socou forte contra a porta, que nunca houvera sido trancada e agora não cedia ao mais forte de seus apelos. Tentou a janela, e estava trancada, mas uma delas cedeu. Jogou a princesa para dentro e viu uma ama se aproximar. Tentou dar-lhes as costas e fugir, no entanto sentiu que não tinha por quê fazê-lo. Na verdade, seu coração foi ao seu ouvido e disse “rapaz, você não pode fazê-lo, sob pena de perder a vida que lhe cabe e resta, e não morrer apenas para viver sem isso”.

Pulou janela adentro. O corpo dela jazia, em verdade. Estava fria, roxa, imóvel. Ajudou a ama a colocá-la na banheira quente. Acho que era hipotermia. A ama queria que ele partisse, e rudemente dava isso a entender. Mais uma vez, ele quase cedeu, se não fosse o suspiro assustado que ecoou forte dentro de seus ouvidos, era ela. E era mesmo ela, pois pediu que ficasse.

Virou-se e viu seus olhos quentes dentro de um corpo frio. A ama esfregava firmemente seus pés, suas mãos com água quente, a fim de vencer o frio que lhe abatia. Ele disse que de água já bastava, haviam ficado muito tempo dentro dela, que visse como sua pele enrugava e já dava sinais de romper. Disse que apenas a terminasse de limpar, e que a colocasse bem rápido sob cobertores e edredons de inverno, não de verão, e que acendesse a lareira, e que lhe desse de beber algo quente, e que a deixasse viver.

– Saia daqui por onde entrou antes seja tarde e jamais, jamais saia, ou que saia como jamais entrou.

Mais uma vez, viu-se a si mesmo virar as costas e sair para não causar mais estragos. Sentia que a culpa do mundo era sua. E ao que sabia, sabia que seu sentir não era o mesmo de alguém, era o mesmo de mais ninguém.

Mais uma vez, ouviu a voz doce irromper em seus ouvidos.

– Se me ama, minha ama, me deixa. E você, se me ama, jamais o faça. Se me ama, me coloca na cama, me cobre com tudo que sente, sente ao meu lado e me esquente.

Eis que então o único líquido de que tinha realmente medo surgiu e lhe arrepiou de dentro pra fora. Nenhuma torrente o assustaria, como não o fizera, mas uma lágrima era capaz de fazer com que tombasse. Felizmente, essa era uma lágrima crente, uma lágrima que lhe colocava de volta no posto de acreditar, e não o contrário.

Olhou para a velha cama de molas, com colchão de molas já marcado de quem ali por tanto tempo deitou, percebeu que nunca ali havia estado apenas porque era agora que ali deveria estar, e pensou:

“É sempre bom ter uma cama de molas por perto, na casa de seus pais. Pois quando você gosta, tem sempre uma ao alcance para nela se deitar quando sentir vontade. Quando não gosta, porém, é bom também poder olhar e saber que em uma dessas nunca mais precisa se deitar”.

É bom saber que o que é e o que vai ser são ainda escolhas que cabem a você e a quem escolher. É bom saber que onde deita é onde quer e onde lhe cabe uma parte. É bom saber que onde deitará já existe pra você.

Será? Afinal, muito fatalismo faz mal à cabeça.

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