quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

LIMPANDO O QUARTO

Tudo começa em um julgamento pela guarda de uma criança. O Tribunal não tem nada de tradicional, e por aí já vemos que se trata de um sonho – em vez de pompa e Madeira entalhada, metal e lycra.

Estou sentado em um dos assentos desses que sim, são tradicionais em repartições públicas, desses que parecem um monte de cadeiras, mas são na verdade presas a uma única base, o que faz de cada uma delas parte de um banco. O ruim disso é determinar o tamanho médio daqueles que se vão por ali sentar, uma vez que a ergonomia deve ser universal nesses casos. Essa frase me lembra dois momentos escolares: bem jovem, com as carteiras cujos assentos eram fixos e a distância entre eles e a mesa, imutável; e menos jovem, mas ainda muito jovem para ser adulto, na escola de design, onde aulas de ergonomia eram lecionadas para desconfortados estudantes naquelas pequenas carteiras sobre as quais não cabem mais que um post-it e um lápis já meio gasto.

Bem, estou sentado nesse assento, e à minha esquerda, dois assentos distante, descansa uma tensa mulher. Deduzo ser a mãe. Apesar de agora não me lembrar nada sobre ela, lembro que era conhecida, jovem e se não exatamente bela, ainda tinha boas chances de encontrar um marido. À minha direita, a mesa da juíza em metal e lycra [antes que se empolgue, falo da mesa, não da juíza].

O meirinho chama alto a testemunha principal do caso: “Daniel!”. O clima é grave, mas como o sonho é meu, naturalmente sei que não se trata de mim. E justamente por isso, não me incomodo – muito pelo contrário – e sim me animo em fazer uma inevitável piada: “Bem, se fazes tanta questão de um Daniel, tendes um aqui, mas receio que não te sirva para muito”. A mulher me olha indiferente, o meirinho com raiva, um pai com desdém, a juíza com seriedade, a criança ruiva com um sorriso. Me sinto como no episódio de Seinfeld quando Jerry e George vão para L.A. e o comediante perde no hotel o guardanapo com uma ideia de piada – não sei se contei mal como ele o fez, ou se realmente o que me lembro é sem graça, assim como se passa com ele. Mas bem, sigo o mestre.

Te garanto que o tal Daniel chega no momento exato antes que eu derreta de tédio. Ele entra seguro, elegante. Tenho certeza de que já namorou a Jennifer Aninston. Quisera eu ser esse Daniel. Se bem que esse Daniel de fato não tem esse nome, e de fato não importa sabê-lo agora. Aliás, como ator, ele está mais que acostumado a ser chamado de outras coisas. Daniel ou não, ele namorou a Jennifer Aninston e entrou no recinto, palmas! Ordem.

O pai da criança está ainda mais à esquerda que a mãe, não há advogados. A ruivinha tenta contar uma história em que ninguém presta atenção. Percebo sua angústia quando começa a se enrolar e enfiar pela lycra prateada que forma a frente da mesa. Ninguém dá a minima para a criança, é como se ela não estivesse ali. Sou o único a ver a cena, e como espectador sou o único que não pode fazer coisa alguma. O pai olha pra mim repreensivo, e para ela ainda mais.

Percebo que é melhor me retirar das ala por alguns instantes. Ao sair, vejo na sala contígua uma reconstituição em pleno curso, uma criança de pele escura segura uma submetralhadora mais pesada que seu corpo e acua a todos. Antes de largá-la e dizer “foi assim, e então matou todos”, confesso que acreditava na capacidade do garoto em render todos ali. Mas tratava simplesmente dele contando como presenciara uma chacina ou coisa assim, nada demais. Até sua mãe estava presente e consentia com a cabeça.

Isso tudo me parecia normal, inclusive e especialmente o fato de que todos falavam espanhol. Bem, como compreendo e não preciso dizer muito, tudo bem.

Dou uma volta pelo local e em todas as salas acontece algo igualmente estranho e castellano. Sempre alguma acusação, tramoia, chame como queira, mas nunca era bonito aos olhos de quem aprecia apenas e tão somente arte clássica.

De repente, num corte seco seguro com a mão direita uma caneta de nankin e tenho sobre a mesa um autorretrato feito em pontilhismo. A obra está incompleta, me parecendo que completá-la é justamente o que me cabe naquele momento. Paro por um instante para imaginar como seria a engenhoca ou a fraude que haveria armado para conseguir fazer um autorretrato de costas. Explico: no desenho, estou naquele enquadramento clássico do contraplano, onde se pode ver meu ombro, minha nuca, orelha direita, um pouco do olho e sobrancelha e, claro, nariz. Percebo que estou mais cabeludo no desenho, e de barba longa. Logo, de duas uma: ou o desenho é antigo e preciso terminar de cabeça, ou não sou eu, ou cortei o cabelo recentemente, o que explicaria a engenhoca para me ver desse ângulo: um simples espelho fixo e outro móvel. Não, não tem um erro de matemática ou o que seja aqui. Isso é problema meu.

O espaço ainda não coberto por pontos ocupa a exata posição onde estaria um livro em minhas mãos, mas nessa região não há absolutamente nenhum ponto. Encosto o bico da caneta sobre o papel mais inclinado do que deveria, e apesar de rapidamente preencher todo o espaço, o tamanho, espessura e angulação dos pontos não combina com o resto do desenho, que está arruinado.

Penso que a única forma de consertar é fazendo um livro completamente negro e um óculos. Penso que o livro que poderia ter em mãos somente poderia ser negro, e somente poderia ser compreendido por intelectuais. No entanto, o livro negro em contraste ao pontilhismo chamaria atenção demais, o que poderia ou não ser positivo. Mas não havia escolha a não ser isso ou renunciar. Isso ou começar de novo, o que não parece de todo mal.

Levanto a tampa da escrivaninha sobre a qual repousam um monte de brinquedos coloridos certamente não da minha época. Lá dentro, muita coisa que me lembra dos tempos de escola. Na verdade, todas elas: livros, cadernos, tudo. Tudo empoeirado, largado. Saem também fotos de celebridades femininas dos anos 80 e 90 vestidas de noiva, bem démodé. Lembro de nunca tê-las colocado ali, mas ali estavam. Observo o espaço interior da escrivaninha e penso que com uma boa limpeza, algumas coisas podem ser colecionadas, e o espaço aproveitado.

Olho para cima enquanto arranco a tampa da mesa, e vejo a prateleira de Madeira rústica e vagabunda, sem acabamento. Vejo a falha na textura claramente, bem de perto. Sobre ela, coleções de livros que não me serviriam para nada mais que uns recortes, digitalizações e colagens. Aliás, abro um outro armário e encontro alguns periféricos antigos, amarelados e empoeirados. Scanner, impressora, zip drive, junto com mais um monte de entulho. Muito pó e a sensação de que não vai ter fim.

Me volto para o quarto, e todo ele está do mesmo jeito: coisas, sacolas, caixas, tudo jogado. Se algo ali presta, precisaremos de muita paciência para encontrar. Livros infantis, periféricos antigos, poeira, sacolas, aaaaaaa! Quando começo a me irritar com a impossibilidade de fazer algo, toca a campainha e me surge uma necessidade absoluta de parar de brigar. Especialmente parar de brigar as brigas que já estão vencidas e, portanto, ao mesmo tempo e inevitavelmente, perdidas. Depende apenas do ponto de vista.

Creio que esse é o sonho mais Eminem quem já tive, se bem que não sei muito do cara.

2 comentários:

  1. Difícil de ler assim como todo texto do Sr. Seu Daniel, mas ótimo, assim como todos.

    Adorei.

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